A Bíblia na moda: best-seller mundial ganha novas traduções na França

Durante seis anos, na França e no Canadá, 50 profissionais se dedicaram a um projeto nada original, mas ao mesmo tempo muito ambicioso: retraduzir a bíblia.

O resultado acaba de ser lançado em Paris, pela editora Bayard. O trabalho foi feito por duplas formadas por um escritor e um exegeta. Cada dupla traduziu mais de um livro, para darem conta, juntas, dos mais de 70 livros que compõem o que se costuma chamar de Bíblia – na verdade, uma colcha de retalhos de textos escritos em estilos, épocas e línguas diferentes. (Estima-se que mais de 60 autores tenham-na escrito ao longo de mil anos e que o termo "Bíblia" só tenha surgido na Idade Média).

Um dos objetivos dessa nova tradução, feita diretamente do grego, do hebraico e do aramaico, é incorporar descobertas e debates recentes, de maneira a ser o mais "rigorosa" e "científica" possível. O segundo objetivo, mais fundamental, é explorar as escrituras enquanto obras literárias, construções de linguagem. Por isso a presença de poetas e romancistas ao lado de arqueólogos e filólogos. A nova Bíblia francesa é um volume de 3.200 páginas, com programação visual moderna e "clean" – fugindo ao padrão capa de couro e abas douradas. Seus textos são agradáveis de ler, alguns em versos livres, outros em prosa com ritmo contemporâneo, sempre valorizando a polifonia dos manuscritos originais. A forma fácil de manusear e os textos fluidos e bem (re)construídos são os principais atrativos para os leitores da nova versão francesa da bíblia, mesmo para os que não têm motivação religiosa.

O número e a variedade de tradutores é intencional: não se quis homogeneizar o texto, dando a impressão ao leitor de se tratar do mesmo texto, do começo ao fim. Pelo contrário, as asperezas, as contradições, as diferenças no estilo, presentes nos documentos originais, foram mantidas e exploradas. Nunca é demais lembrar a diversidade de gêneros literários que compõem a bíbia: mitos de origem, rezas, conselhos de sabedoria e considerações morais, peças legislativas, narrações de eventos históricos, descrições de paisagem, entre outros. Os pedaços são costurados em ordem cronológica e, no entanto, foram reescritos e recombinados ao longo dos séculos.

Assim transcorreu o trabalho das duplas: os estudiosos dos textos e das línguas bíblicas procediam a uma decifração minuciosa, palavra por palavra, até chegarem a uma tradução que consideravam exata; passavam-na, em seguida, aos literatos, que reescreviam o texto de forma nova e pessoal, sem alterar seu significado. Dentre os escritores que embarcaram na empreitada, havia dramaturgos (Valère Novarina, François Bon), poetas (Jacques Roubaud, Olivier Cadiot), romancistas premiados (Jean Echenoz, Emmanuel Carrère) e ensaístas. O vai-e-vem entre um e outro membro da dupla era supervisionado pelos editores e por um comitê científico. Cada linha da tradução foi pensada, ao mesmo tempo, do ponto de vista literário e do ponto de vista da fidelidade ao sentido original.

A palavra "glória" (gloire), por exemplo, aparece às vezes como "brilho" (éclat, rayonnement); "pecado" (péché), em alguns casos, foi traduzido como "crime" ou "erro" (crime, faute), dependendo do contexto cultural e religioso em que o original foi escrito. Um dos coordenadores do projeto, Jean Echenoz conta que houve mesmo a presença do "politicamente correto" em meio às discussões: tradutores canadenses queriam que a expressão "Père" (Pai) fosse substituída, por "parents" (pais), para evitar definir o gênero de Deus como masculino... As escolhas mais espinhosas de termos, bem como referências a traduções anteriores, estão num glossário, no final do volume, logo após uma linha do tempo. A referência a Deus foi mantida na forma enigmática de tetragrama, que cada um pronuncia como achar correto.

O lançamento da Bíblia "literária" da Bayard foi em setembro. Dois meses depois, uma página inteira do jornal Le Monde anuncia o lançamento de uma reedição da internacional "Bíblia de Jerusalém", obra coletiva produzida na Escola Bíblica de Jerusalém. No entanto, o tom de pregação da Editora Fleurus contrasta com o enfoque leigo e ecumênico da Editora Bayard. Este segundo lançamento, recheado de "chaves de leitura" para os fiéis pretende, segundo Anne Beaumont, ligada ao projeto, "dar a Deus a liberdade de falar e aos homens a liberdade de escutar", contrapondo-se à "exegese crítica sem moderação, que é para o estudo da Bíblia aquilo que a autópsia representa para a medicina: transforma a palavra de Deus em língua morta, a ser dissecada".

Mais interessante que adentrar a insolúvel polêmica entre crentes e não crentes, é se perguntar por que essa obra atrai e fascina tantos milhões de pessoas, há tantos séculos. Até que ponto os fatos que narra são comprováveis fora do âmbito da fé? Quem a escreveu? Comprovando que a Bíblia realmente está na moda, na França, um número recente da revista "L'Histoire" dedicou um número ao estado atual das pesquisas sobre o tema, no qual especialistas em estudos bíblicos e em história antiga nos fornecem alguns elementos para balizar uma leitura crítica das escrituras sagradas.

História do best seller e desconstrução do mito

Os especialistas são unânimes em afirmar que nenhum texto foi escrito antes do século IX a.C. Os textos mais antigos, os "livros dos reis" emanam, provavelmente, de arquivos administrativos em que os soberanos registravam invasões, rebeliões locais, leis etc. Os textos dos profetas Oséas, Isaías e Amós parecem remontar igualmente ao século VIII a.C. – a datação é possível porque os autores indicam os reis no poder, naquele momento. No entanto, a maior parte da bíblia foi redigida muito tempo depois, na época da dominação persa, entre 539 a.C. e 330 a.C, momento em que a compilação e a reedição dos textos permitiram a continuidade simbólica do povo judeu. A pesquisadora Françoise Briquel-Chatonnet explica que a invasão persa "é o momento em que a bíblia foi redigida como conjunto coerente, respondendo a uma necessidade histórica precisa. Em meio à dominação estrangeira, os habitantes da Judéia, cujo reino havia desaparecido um século e meio após o de Israel, encontraram uma nova forma de fundar sua identidade: proclamar uma origem étnica comum, uma história comum e uma lei independente do império persa".

Em relação à língua original, a composição também é complexa. Embora parte dos manuscritos tenha sido escrita em hebraico, os textos que datam da época da dominação persa foram redigidos em aramaico, idioma semita oficial do Oriente Médio, entre os séculos IV e VI a.C. Uma terceira parcela das escrituras, posterior à conquista de Alexandre, o Grande (333 a.C.), foi redigida em grego. A primeira tradução integral para o grego foi encomendada pelo rei macedônio Ptolomeu, um apaixonado por livros, que desejava uma versão das escrituras judaicas na biblioteca que fundara, em Alexandria. Diz a lenda que Ptolomeu encomendou a tradução a 72 sábios, 12 descendentes de cada tribo de Israel. Reunidos na Ilha de Pharos, eles teriam terminado, em 72 dias, traduções milagrosamente idênticas. Essa tradução grega, de acordo com o historiador Pierre Chuvin, "se inscreve num movimento geral de curiosidade dos gregos em relação aos povos subjugados, que ia de encontro ao desejo destes mesmos povos de se exprimirem". Quando a tradução grega foi adotada pelos cristãos, os judeus passaram a condená-la como imprópria e desrespeitosa. A primeira tradução para o latim remonta ao século III de nossa era, mas, cem anos depois, foi suplantada pela tradução de São Jerônimo, direto do hebraico, que se tornou a versão oficial da Igreja católica.

O ano de 1452 representou um grande impulso na história da internacionalização e da democratização da Bíblia. Um dos principais objetivos de Gutenberg, ao inventar sua máquina de impressão com caracteres móveis, era, nas palavras do próprio inventor, "que os manuscritos voem, multiplicados por uma máquina infatigável, que atinjam todos os homens", pois "Deus sofre com o fato de uma grande multidão não pode ser atingida pela palavra sagrada". A essa revolução quantitativa, somou-se, no mesmo período, a qualitativa, impulsionada pelos humanistas fascinados com a redescoberta da Antigüidade. No século XVII, com os libertinos, começaram as controvérsias: a Bíblia foi ditada por Deus ou escrita por homens? Os libertinos apontaram, pela primeira vez, contradições: como poderia Moisés ter escrito um livro que conta sua própria morte? Como um livro escrito por Deus seria desordenado, redundante e contraditório? Nesse contexto, o filósofo Spinosa foi quem primeiro tratou a Bíblia como produto histórico, inaugurando a exegese biblíca em seu sentido moderno.

Algumas afirmações da Bíblia são consideradas plausíveis, ou ao menos verossimilhantes pelos historiadores e arqueólogos contemporâneos: a inexistência de estatuetas ou representações pictóricas de deuses judaicos, como preconiza a bíblia; as guerras de outros reinos contra Judá e Israel, registradas em barras de argila (o registro administrativo na Antigüidade); o reinado de Davi, comprovado a partir de uma pedra com inscrições cuneiformes, encontrada em 1993, em Tel Dan; a peridiocidade dos gafanhotos e sapos, "pragas" que realmente danificavam a agricultura egípcia.

Por outro lado, vários pontos são postos em cheque pelos estudiodos leigos. Moisés, por exemplo, foi provavelmente uma figura mítica, e não real. Alguns elementos que sugerem tal hipótese: os textos que evocam sua existência foram escritos posteriormente à data em que ele teria vivido; naquele período, o Egito dominava toda a região de Canaã, poranto não faria sentido fugir do Egito para lá; a lenda do bebê abandonado em um cestinho e recolhido por membros da corte era uma constante na tradição oriental da época, sendo evocada, também, na biografia de Sargon, imperador da Mesopotâmia.

Para Jean Bottéro, um dos principais especialistas em Mesopotâmia, a Bíblia resulta, na verdade, de um cruzamento de heranças de várias culturas da Antigüidade meso-oriental. Para ilustrar sua teoria, Bottéro cita o exemplo do dilúvio bíblico, muito semelhante (e posterior) a um relato presente no "Poema do supersábio", cujos fragmentos foram encontrados há poucos anos, na região onde ficava a Babilônia. Trata-se de um relato em versos em que Enlil, o rei dos deuses, cansado da bagunça dos homens, decide provocar uma catástrofe para dizimá-los. Porém, outro deus, Ea, consegue prevenir um humano sobre o dilúvio iminente, aconselhando-o a construir um barco sólido e embarcar suas mobílias, víveres, sua família, animais domésticos e selvagens e também artesãos capazes de transmitir saberes técnicos. Começa então a tempestade destruidora, que dura 6 dias e 7 noites. Mesmo o episódio da pomba, no final, voando para longe e não mais retornando à arca – o que atesta a presença de terras secas - está presente na versão babilônica do dilúvio...

A pesquisadora Françoise Chatonnet defende, provocadoramente, que "hoje se considera que essa região tem uma história autônoma, na qual o povo da Bíblia não é senão uma pequena parcela". Ela acredita que todos os reinos antigos do Oriente Médio tinham arquivos com crônicas reais, costumes e lendas, sendo que alguns já foram encontrados em sítios arqueológicos na Mesopotâmia, em estilo muito semelhante ao da Bíblia. Entretanto, não foram transmitidos às gerações seguintes, nem traduzidos para o grego e o latim. A diferença principal é que "no caso da Bíblia, um grupo de pessoas decidiu, após a perda de sua soberania política, construir uma história para si e perpetuá-la. Isso é que é único e original".

O historiador Jean Yoyotte, na mesma direção, sugere que tomem cuidado ao "considerar a história do Oriente Médio pelo prisma da bíblia e se evite o bibliocentrismo. Do ponto de visto estrito da história antiga do Egito, a aventura de Moisés e a fuga do Egito, por exemplo, são não-eventos históricos. Do mesmo modo, as dez pragas sucessivas, supostamente enviadas por Deus, num período tão limitado de tempo, teriam deixado marcas indeléveis de uma catástrofe ecológica, que no entanto nunca foram encontradas." Outra abordagem que pode provocar dor de barriga em padres e rabinos é a teoria de que Yahvé, por muito tempo, foi apenas um dentre muitos deuses nacionais de Israel. Ele teria sido a principal divindade para os judeus, mas não a única. No entanto, era considerado "ciumento", passando a "exigir", cada vez mais, devoção incondicional e exclusividade.

Novas pistas e interpretações destes tão antigos textos parecem não cessar de surgir. Dentre as descobertas do século XX, estão, por exemplo, os "manuscritos do Mar Morto", encontrados por beduínos em 1947, nas grutas de Qmram, dentro de jarros. Uma das revelações que trouxeram foi a importância de um grupo dissidente de judeus, os "essenitas", fervorosos milenaristas apocalípticos que, em torno do ano 0 de nossa era, viviam isolados, assustados com a presença do "mal" na Terra, aguardando o fim dos tempos ou a chegada de um salvador. A historiadora Mireille Hadas-Lebel esclarece que "essa fermentação espiritual dá uma idéia do contexto de espera messiânica no qual pôde nascer o cristianismo. Levanta mesmo a hipótese de que Jesus era um essenita, inclusive porque os pergaminhos encontrados em 1947 falam de um "mestre de justiça" discidente, perseguido e "suspendido vivo na madeira". Provavelmente, a Bíblia ainda suscitará vários debates acalorados, principalmente em tempos em que o fundamentalismo – ou seja, a atitude acrítica de levar textos sagrados ao pé da letra – está em todas as manchetes. O paradoxo é que, mesmo que grande parte da Bíblia seja comprovadamente invenção ou convergência mítica de várias tradições, seu enraizamento na cultura Ocidental é tal, que não há intelectual ateu que possa prescindir de lê-la...

BOX 1: Mais uma versão da Bíblia, no Brasil No Brasil, a editora Vozes acaba de lançar sua 45a. edição da Bíblia Sagrada, coordenada pelo frei Ludovico Garmus e acompanhada por notas teológico-pastorais e sinopses de cada parte. A Vozes anuncia como principais novidades o maior tamanho da letra, para facilitar a leitura, e o cuidado com a questão de gênero - em outras palavras, com o machismo. Dois exemplos: em outras versões brasileiras da Gênesis lê-se "façamos o homem à nossa imagem e segundo nossa semelhança", o que virou, na nova versão, "façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança"; numa das cartas de Paulo aos Coríntios, as outras versões pregam que "a mulher deve trazer o sinal da sujeição em respeito aos anjos", ao passo que esta afirma que "a mulher deve pentear-se convenientemente em respeito aos anjos" (para não escandalizá-los).

BOX 2: As partes e o enredo do Velho Testamento Desde o século II a.C., o Velho Testamento está organizado em três partes. A "Torah", composta por cinco livros, é conhecida também como "Pentateuco". Ela narra: a) a criação do homem, a vida dos descendentes de Abrahão, de seu filho Isaac e seu neto Jacó, que por sua vez é o pai dos 12 patriarcas fundadores das doze tribos de Israel; b) a escravidão no Egito e a saga no deserto rumo à terra prometida, liderada por Moisés; c) a legislação civil e religiosa da comunidade israelita, instituída por Moisés. A segunda parte do Velho Testamento contém os "Livros dos profetas", contando a sorte do povo judeu desde a entrada na Terra Prometida até a deportação para a Babilônia. A terceira parte, por fim, reúne salmos, provérbios, crônicas e trechos conhecidos por sua beleza poética, como o "Cântico dos cânticos" e o "Livro de Jó". Os livros "deuterocanônicos", como o Livro da Sabedoria e de Judite, fazem parte apenas do Velho Testamento dos cristãos - pois, como o Novo Testamento, foram escritos diretamente em grego, posteriormente aos três livros mencionados acima, sendo assim rejeitados pelo judaísmo.

Ilana Seltzer Goldstein

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