Jorge Amado e Exu nas encruzilhadas

Foi com orgulho que Jorge Amado contou, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, havia freqüentado "casas de raparigas" e botecos quando jovem, saído de saveiro com os pescadores e, antes dos dezoito anos, já recebera seu primeiro título no candomblé: "os anos de adolescência na liberdade das ruas da Bahia, misturado ao povo do cais, dos mercados e feiras, nas rodas de capoeira e nas festas populares (...) foram minha melhor universidade". No plano literário, analogamente, a técnica narrativa folhetinesca, inspirada em elementos da cultura popular e da tradição oral aproximava-o do grande público. Versos de sete sílabas - como no cordel e nas modinhas populares - constantes reviravoltas, heroísmo, maniqueísmo, palavrão e linguagem das ruas, longos títulos oferecendo alternativas e antecipando o desdobrar do enredo, eram todos ingredientes caros a Jorge Amado.

Vale a pena destacar alguns exemplos. Em Jubiabá (1935), primeiro sucesso do escritor, o herói Balduíno "dava a vida por uma boa história, melhor ainda se esta história fosse em verso". O destino trágico da amada Lindinalva é prenunciado pela tradicinal "Nau-Catarineta" (canção-relato sobre a salvação dos desesperados) e o livro termina com o "ABC de Antonio Balduíno", espécie de biografia de cordel, composta em redondilha maior: "furtou mulata bonita / brigou com muito patrão / morreu de morte matada / mas ferido à traição". Gabriela, Cravo e Canela (1958) além de deixar bem claro que “não havia no mundo comida capaz de comparar-se com essa da Bahia”, contém várias elementos grotescos: “Dora Cu de Jambo” trabalha no cabaré de segunda “Bate-Fundo” e, quando o coronel Tonico Bastos é pego com Gabriela, traindo Nacib, espalham-se os versinhos: “O Tonico Penico / Don Juan de puteiro / Se fudeu por inteiro (...)” .

Mas, paralelamente à familiaridade com a vida popular baiana, Jorge Amado dominava etnografias produzidas sobre religião e culinária, textos científicos de história e problemas raciais. Pierre Verger, fotógrafo e etnógrafo de origem francesa era amigo pessoal do escritor e o folclorista Édison Carneiro foi companheiro de juventude de Jorge Amado. No campo das artes plásticas, trocou idéias com Mestre Didi, Emanuel Araújo, Carybé e Calasans Neto. Nos manuscritos pessoais que constam do acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, estão citados Euclides da Cunha, Roger Bastide, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Sobretudo este último, que Amado qualificava como "imenso escritor, de curiosidade desmedida (...) sabia tudo do Brasil e tudo nos ensinou(...)" (manuscrito 640 da Fundação Jorge Amado, 1987). Por outro lado, a fundação que leva seu nome, espécie de templo-museu, reflete a face institucional e oficial de Jorge Amado. Criada por um decreto assinado no dia do aniversário de Zélia, pelo amigo e então presidente José Sarney, localiza-se no Pelourinho equipado para turistas, restaurado pelo também amigo Antônio Carlos Magalhães. A Fundação denota a aproximação de Jorge Amado, nas últimas décadas, de membros das elites locais – provavelmente, menos por identificação ideológica que pelo afeto pessoal e pelo professado amor à cultura popular nordestina.

Tal multiplicidade de repertório e de relações transparece, por exemplo, em Tenda dos Milagres (1969), um de seus romances preferidos. As idéias ou os nomes de Nina Rodrigues, Manoel Querino, Arthur Ramos e do Conde de Gobineau chegam ao público em meio a humor, surpresas, flashbacks rápidos, palavrões e cenas picantes. Tenda... garante, pela maneira de narrar carnavalizada e inspirada no cordel, que o leitor se inteire, sem aridez, de um debate "científico" sobre os perigos da miscigenação que se passou há mais de um século e conheça alguns aspectos sombrios da história do Brasil, como a repressão aos terreiros de candomblé e a censura na época da ditadura.

O papel dos "agentes mediadores", indivíduos que possibilitam a comunicação entre estratos sociais heterogêneos e acabam catalizando cristalizações culturais foi analisado por Hermano Viana, em estudo sobre a ascensão do samba carioca (O Mistério do Samba, 1995). Creio ser esse um termo apropriado para se entender o papel de Jorge Amado na cultura brasileira. É como se Amado fosse um divulgador, um vulgarizador científico, que transita entre duas esferas, a do saber erudito e a do saber popular. Tal posição intermediária e conciliadora é admitida em Navegação de Cabotagem (1992), um "quase livro de memórias" que o escritor lançou ao completar 80 anos: "privei com alguns dos mestres, dos verdadeiros, no universo da ciência, das letras e das artes: Picasso, Sartre, Fréderic Joliot-Curie, meu privilégio foi tê-los conhecido. Não menor o apanágio de ter merecido a amizade dos criadores da cultura popular da Bahia, de haver sido mote para trovadores populares (...)" (Navegação de cabotagem,1992, p.95).

Por ser um obá desde 1959 - ministro, sábio do candomblé -, Jorge Amado dizia ter obrigações com a comunidade. Em 1989, por exemplo, uma senhora bateu à sua porta porque um motorista de táxi havia engravidado sua filha e o escritor deveria arbitrar a questão. Envolveu-se, entre outras causas, na preservação da Igreja de Santana e no problema ecológico da Lagoa do Abaeté, quando ali quis se instalar uma fábrica poluente. O romancista atuava como administrador e representante informal da população. Explicou à biógrafa Alice Raillard que era respeitado pelo povo "com um respeito marcado por conhecimento, intimidade e afeto" e completou "não ocupo cargo algum, não tenho nenhuma função, não sou deputado, não sou banqueiro, não sou rico, mas as pessoas vêm me procurar e eu me sinto responsável" (Conversando com Jorge Amado, 1992, p.81). Pode-se dizer, talvez, que Jorge Amado encarnava o modelo da "cordialidade", na acepção de Sérgio Buarque de Holanda, ou seja, personificava o modelo de sociabilidade – tão brasileiro - em que os laços"do coração" invadem a esfera pública e legal.

Não foi sem um certo exagero que um jornalista inglês, certa vez, afirmou que "na Bahia, Jorge Amado se tornou uma versão benigna do patriarca feudal, um homem que poderia, se quisesse, abalar o governo brasileiro" (The Independent, 5/8/89). Mas é bem verdade que, no cotidiano, admiradores epistolares sentiam-se à vontade para solicitar ao escritor todos os tipos de favores e ajuda. A datilógrafa Eldenir Vargas pediu, por meio de carta, uma máquina elétrica IBM 82 C ou 196 C, "usada ou em condições de funcionamento" (carta de 19/9/85, acervo da FCJA). Já Aldri Alves propôs que Jorge Amado terminasse o seu romance; ele escreveria até a página 100 e Jorge Amado daí em diante: "Vai ser um sucesso a obra de Aldri e Jorge Amado" (carta de 21/9/85, acervo da FCJA). Sem falar nos telefonemas de gente pedindo ajuda na obtenção de bolsas para o exterior...

Ficção e realidade parecem se imbricar, não só nas páginas dos romances, como na construção da própria identidade pessoal de Jorge Amado. O romancista se aproximava, em alguns aspectos, de suas personagens, construindo, para si próprio, uma aura de figura folclórica, inseparável da Bahia. Assim se apresentou na França, ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Lyon: "acredito que sou semelhante aos personagens dos meus livros, esses bons baianos" e, despistando a origem social de branco, bem-sucedido e filho de fazendeiro de cacau, "como eles, sou um mulato, um homem qualquer, um pobre, não aspiro a ser mais que um dentre eles". Jorge Amado-criatura era como suas personagens e também como a representação do baiano "típico" descrito no guia Bahia de Todos os Santos (1945): "sempre que penso no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordo não apenas fisicamente. Como caráter também: bom, amável, glutão, sensual, agudo de inteligência, bem falante, mas de fala mansa, sabendo tratar tão bem os inferiores quanto os superiores. Comendo comida gordurosa, cheia de azeite, mas apimentada também" (Amado,1967:31). Curiosamente, nas recordações registradas em Navegação de Cabotagem (1992), Jorge Amado narra peças que pregou e pequenas espertezas que poderiam estar em sua ficção. Além disso, uma quantidade considerável de capítulos trata de deleites culinários com a comida regional. O lado "Don Juan", na juventude, é também lembrado com orgulho: "eu rosetava de leito em leito: mulheres em abundância, tantas, eu quase não dava abasto, sobravam da agenda em grande parte ocupada pela atividade política." (Navegação de Cabotagem,1992,p.8). O próprio escritor sintetizou uma espécie de máxima pessoal:"não sou mais do que meus personagens e se os criei, eles me criaram também" (manuscrito 482 da FCJA).

Mas tratemos, por fim, do título deste artigo. Exu era o logotipo do escritor, presente na contracapa dos livros e no papel timbrado de sua correspondência. Trata-se de uma divindade da mitologia yoruba que circula entre a vida e a morte, o bem e o mal. Está entre hemisférios, como o mestiço e o malandro, figuras freqüentes na obra amadiana. É curioso que um ex-comunista que sempre se declarou "materialista" tenha eleito uma divindade como símbolo. Na verdade, a escolha de Exu sugere a filiação à cultura popular mestiça baiana e, principalmente, revela simpatia pelo elemento mediador. À maneira de Exu, orixá que representa o movimento, Jorge Amado soube se comunicar com elites e camadas populares e transitou livremente entre identidade pessoal e criação ficcional.

Ilana Seltzer Goldstein

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