Identidade cultural

Por Guido Kuhn

Quando vejo a euforia com que muitas comunidades do interior festejam o Dia do Colono, entrevejo também o orgulho que têm de tudo o que as gerações dos seus ascendentes construíram pelo Brasil, ao longo do tempo. O mesmo apreço que manifestam pela própria cultura e pelos valores que conservam, também o têm quando medem o amor pela pátria brasileira. Tentando compreender a alma dessas pessoas, descobrem-se realidades fantásticas. Aqui no Sul, passaram um século sem entender a língua do País que ajudaram a construir, por mais que quisessem sabê-la, para ao menos poderem se comunicar com os outros brasileiros.


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Há alguns anos, numa de nossas travessias do oceano, batemos com os costados no roteiro dos contos de fada dos Irmãos Grimm, rodando pela estrada ribeirinha e até navegando pelo Rio Weser. Festejava-se um romântico casamento no pequeno castelo da Branca de Neve, a cuja entrada há um modesto memorial dos Músicos de Bremen. Depois de Bodenwerder, berço do Barão de Münchhausen, a rota deu na fascinante cidade de Bremen, patrimônio mundial da Unesco. Os famosos músicos nunca chegaram até ali, mas junto à praça do mercado há também um merecido monumento em sua honra.

Para leste, caminhamos até o bairro Schnoor, onde há um simpático mercado para compras populares. Voltando na direção da famosa Böttcherstrasse, que é uma verdadeira galeria de arte em via pública, no caminho havia uma igreja. Era domingo, dia de missa, e entramos.


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A igreja estava lotada. Conforme horário afixado na porta, a missa apenas começava. Dentro, tudo solene, todos participando, coral com instrumental enchendo o ambiente, som perfeito para o clima de fé e oração. Cantavam e rezavam numa língua estranha. Mas aqui não é a Alemanha? – perguntamos uns aos outros. Na juventude, tivera alguns colegas de origem polonesa. Era a língua deles, só podia. Todos perceberam que éramos “de fora”. As mulheres puxaram para perto de si as suas bolsas, antes deixadas sobre os bancos.

 Entre eles não haveria problema de furto, mas com pessoas estranhas não podiam arriscar. Mesmo nada entendendo de polonês, foi uma missa e tanto. Dava gosto ver aquela comunidade de eslavos, rezando e cantando, unidos na língua, na cultura e na fé. Claro que, estando na Alemanha, eles sabiam alemão, e assim pudemos nos entender na saída.

 
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Esses poloneses formavam uma comunidade, certamente todos se conheciam entre si. Tinham os mesmos valores, a mesma cultura, os mesmos costumes, a mesma língua, a mesma fé religiosa, as mesmas regras não escritas, respeitadas por todos. Não poderíamos nos incomodar com o fato de as mulheres recolherem as bolsas diante da nossa presença. Eles conheciam o mundo deles, confiavam uns nos outros, mas também sabiam que lá fora havia um mundo grande, globalizado, hostil, sem regras muito claras de convivência, ou pelo menos com hábitos bem diferentes dos deles. Quem lhes garantiria que esses estrangeiros, que éramos nós, não estivessem aí para afrontar os seus costumes, constrangê-los com algum desvio, passar a mão nalguma bolsa?


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A unidade cultural ajuda a manter a harmonia social, e ali estava um exemplo de uma comunidade pequena no interior de uma grande cidade. Quando alguém não consegue entender uma cultura diferente da sua, às vezes até torcendo o nariz para ela, muitas vezes aparece alguém para dizer que é preconceito, uma coisa feia. Todo grupo étnico tem uma afeição especial pelos próprios costumes, por sua história comum, gosta de conviver com seus pares. Como já ocorrera na colonização do Sul, esta unidade de grupo também foi fundamental quando começou a ser povoada a fronteira oeste do Brasil.

As novas colônias foram implantadas com famílias de perfil cultural homogêneo, que tinham os mesmos valores e costumes, professavam a mesma fé e falavam a mesma língua. E prosperaram principalmente por causa disso, pois foi o que lhes permitiu a vida comunitária, a ação coletiva harmoniosa para a solução dos problemas comuns, em geral sem interferência do poder de estado. Muitas dessas localidades ostentam, até hoje, recordes positivos nos índices de alfabetização e segurança.


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A globalização mundial torna cada vez mais presente a diversidade étnica, riqueza que o Brasil talvez tenha mais que qualquer outro país do mundo. Mas o convívio de todos se torna uma coisa muito mais difícil, por causa dessas diferenças, que muitas vezes interferem na vida das pessoas e acabam provocando cisões, quando não uma grande torre de Babel. É legítimo que cada segmento da população preserve as suas raízes culturais, promovendo-as e até mostrando-as aos demais. Fazê-lo em harmonia e igualdade exige uma grande tolerância. Nossas instituições já caminharam bem nessa direção, mas é preciso cuidar com as áreas de atrito. A busca da igualdade na diferença também é bem difícil, pois sempre haverá os que querem ser mais iguais que os outros.


Guido Kuhn é jornalista e cronista


Fonte: Gazeta do Sul - Santa Cruz do Sul, RS, 02-03.08.2008
Site: www.gazetadosul.com.br

http://www.guiasaojose.com.br/novo/coluna/index_novo.asp?id=1485

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