Zumbi

Um herói negro que não se chama Zumbi

O que pode fazer um negro miúdo, de pouca estampa, fala baixa e ligeira, sem parentes importantes e vindo do interior, num Estado [Alagoas] que nasceu escravista e retardou, o tanto que foi possível, a liberdade de seus ancestrais? Pode muito - se for Antonio Sapucaia.

Pode fazer carreira na magistratura e ser aplaudido por onde passa, quando da sua despedida, depois de uma longa jornada de 37 anos. Ser juiz em municípios os mais diversos, em que quase sempre fez morada, sentindo a alma do povo para o qual trabalhava. Magistrado linha-dura, que descartou os presentes dos mais afoitos e desavisados, mas conquistou o respeito e a admiração de pobres e ricos que enxergaram nele a fumaça do bom Direito.

Pode provocar a ira dos seus pares ao entrar pela porta da frente - a mesma pela qual sai - da principal Corte da Justiça de Alagoas. Seu discurso de posse - inesquecível!-, de uma inesperada contundência, resultou, é a verdade, em muitos desafetos. Mas deu-lhe novos amigos e marcou o começo de um novo tempo na magistratura alagoana, cujas vísceras foram ali expostas.

Pode ser dono de um humor desconcertante, pela rapidez com que se manifesta sempre. Como no dia em que fui entrevistá-lo e por nós passou uma bela moça (dona Marli, por favor, pule essa parte.) Seguiu-a discreta mas insistentemente, ao que indaguei: "Doutor?!". A resposta veio do homem simples e sagaz: "A Justiça é cega, o juiz, não."

Pode escrever um livro - sobre Costa Rego -, resultado de incansável e criteriosa pesquisa que recolheu e perpetuou os feitos de um conterrâneo, jornalista como ele, que governou Alagoas com mão de ferro e muito respeito pelo bem público.

Pode fazer a população de um Estado inteiro se sentir de alma lavada - em êxtase, quase -, por conta de uma decisão difícil que tomou, mesmo que isso lhe tenha custado algumas noites de sono. Era, sabia, a chance de reescrevermos a nossa história.

Pode, por isso, atrair a ira dos que se julgavam acima da Lei, mas que tiveram de se curvar à firmeza de caráter do mesmo negro miúdo, em cujos cabelos encarapinhados o tempo tratou de registrar sua inexorável passagem.

Pode ser o herói de um povo cuja esperança de há muito havia se despedido. Sim, porque a ficção produz deuses; os heróis se forjam nas misérias do cotidiano, com suas fraquezas e grandezas - quando estas são as mais necessárias e menos disponíveis aos seus próximos.

Pode - e deve - carregar na memória os erros cometidos, o que o torna ainda mais humano, demasiado humano. Sem nunca, entretanto, ter deixado fugir a essência do homem justo.

Pode, enfim, usufruir do direito de descansar, ler, viajar e - como me disse - cuidar dos netos. Faça isso pelos seus, doutor Antonio Sapucaia. O senhor já fez tanto pelos nossos!
Fonte: Blog do Ricardo Mota em 30/05/08

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