“DOSSIÊ MOSCOU”: RELATO DE UMA PERPLEXIDADE NUM BELO E COMOVENTE OLHAR ESTRANGEIRO SOBRE A RÚSSIA EM TRANSE

Quanto tempo dura um fato histórico, desses que repercutem em cada canto do planeta? Talvez se evapore em apenas uma década, triturado pelo imediatismo das rotativas dos jornais. Ou é possível que atravesse séculos afora em algumas páginas de livros de História obrigatórios para estudantes secundaristas, impregnado do falso frescor de uma atualidade reconstituída.

É provável que a crônica e a interpretação da derrocada do império soviético tenham uma vida útil mais longeva do que os 74 anos (1917-91) em que tremulou a bandeira vermelha, com a foice e o martelo. Isso porque o desmanche da URSS é mais do que um fato histórico, é uma perplexidade histórica. E é sobre essa perplexidade histórica que o repórter brasileiro Geneton Moraes Neto escreveu um grande livro: “Dossiê Moscou” (Geração Editorial,São Paulo,234 págs,R$ 39,50).

A perplexidade diante do fim da URSS e de tudo o que ela representava é a conduta natural de todos os entrevistados (ou citados), russos ou não, que transitam pelos capítulos de “Dossiê Moscou”. Alguns, felizes com a demolição do regime totalitário, o despertar do pesadelo stalinista. Outros, infelizes com a desconstrução do sonho comunista, a desintegração do império soviético e a entrada triunfal do capitalismo. Todos, independentes do grau de alegria ou tristeza, absolutamente perplexos.

O maior mérito, entre vários, de “Dossiê Moscou” é captar, com extrema sensibilidade e impressionante veracidade, o que se passou na cabeça e no coração dos russos (ou não) que vivenciaram a queda da URSS e a semana da primeira eleição direta para presidente da Rússia (96), o ponto de largada da jovem democracia do ex-Império. Em síntese, um flagrante histórico único de um sentimento coletivo de perplexidade em relação ao passado (retornarás, Stalin?), em relação ao presente (qual o preço da liberdade?) e em relação ao futuro (o que fará conosco o velho lobo do capitalismo?). “Dossiê Moscou” é o relato perfeito, lição de excelente jornalismo, dessa perplexidade histórica.

O livro-reportagem de Geneton Moraes Neto também é uma divertida mas respeitosa narrativa sobre os hábitos e costumes da Rússia dos anos 90, em que o povo russo vivia as contradições da transição entre um regime que não existia mais e outro que começava a ser instalado. Personagens reais, doutrinados na velha burocracia autoritária, perdidos e tontos nos labirintos anárquicos inerentes ao nem sempre suave processo de liberdade.

Talvez aí resida a compreensão de toda essa perplexidade, dos russos ou não. Havia, é provável, uma fé religiosa inabalável na eficácia da burocracia soviética, alimentada por décadas de propaganda e de força bruta. Essa burocracia, engendrada para durar séculos, não resistiu aos que os novos intérpretes do caos planetário chamam de “cronopolítica” ou política da velocidade, algo que começou nos já distantes anos 60 - e avança com o tempo real e simultâneo da informação. Algo muito mais próximo de McLuhan do que de Béria. (Quando pensávamos que o desmanche vertiginoso do império soviético havia consumido toda nossa perplexidade, eis que surge o fatídico, e também em tempo real e veloz, 11 de setembro norte-americano.)

“Dossiê Moscou” é um belo e comovente olhar estrangeiro sobre a Rússia em transe dos anos 90. Um livro que merece ser, de imediato, traduzido para o russo, para que esse povo que sabe fazer história como poucos conheça mais sobre si mesmo, sobretudo quando o relato é de um grande repórter brasileiro.

Assim como o urso panda chinês e o macaco-prego brasileiro, o grande repórter é, sem exagero, uma raça em extinção e deveria constar da “lista vermelha” das organizações que lutam pela preservação da vida na Terra. Geneton Moraes Neto é, antes de tudo, um grande repórter, aquele tipo que acredita que a Humanidade ainda se interessa, ou deveria se interessar, pelos contadores de história.

No “Dossiê Moscou”, esse grande livro de reportagem, senti falta de apenas uma coisa: qual terá sido a manchete de primeira página do jornal Pravda no dia da primeira eleição direta para presidente da Rússia? Jornalismo é assim mesmo: até repórteres obsessivos e competentes levam “furos”. Só resta a nós, leitores, imaginar qual será a manchete do Pravda quando, algum dia, o outro Império desabar, com a mesma velocidade da informação.

(*) Amin Stepple Hiluey é jornalista e cineasta

"DOSSIÊ MOSCOU" Pedidos : Geração Editorial / São Paulo : www.geracaobooks.com.br

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