Jorge Semprún e a violência do oprimido

Jorge Semprún e a violência do oprimido

A violência do oprimido contra o seu opressor, ainda que lamentável, é moralmente justificável. Quando a imprensa dá destaque a três ou quatro vítimas civis em Israel, de um foguete lançado da Faixa de Gaza, devemos lamentar estas mortes, mas não podemos esquecer que, ao lançar seus foguetes, os palestinos estão apenas revidando os maciços ataques de Israel contra a população civil de Gaza, que costumam causar milhares de vítimas

No seu magnífico livro de memórias sobre a sua prisão no campo de concentração de Buchenwald, nas proximidades de Weimar, "A Longa Viagem", (Le Grand Voyage, Editora Arcádia, Lisboa, 1963), Jorge  Semprún Maura (Madrid, 10/12/1923 - Paris, 07/06/2011 - Escritor, político e roteirista cinematográfico)   narra um exemplo dramático do dilema de um combatente.

É fácil odiar o inimigo quando ele faz parte de um todo maligno, no caso de Semprún, os nazistas das SS, mas muito difícil quando ele é encarado como um indivíduo.

Após a libertação do campo de concentração e a fuga das SS, Semprun permaneceu algum tempo ainda no campo a espera de que fosse providenciado seu retorno à França. Durante os dois anos em que permaneceu preso no campo, ele pode ver que no seu entorno havia uma povoação e algumas vezes, pode vislumbrar seus moradores ao longe.

Logo que pode deixar a prisão, ele resolveu visitar esta pequena vila. Encontrou quase todas as casas fechadas. Uma delas logo lhe chamou a atenção. Era uma casa de dois pisos e ele percebeu que da varanda do segundo andar, as pessoas praticamente podiam ver tudo que se passava no interior do campo.

Ele bate na porta e depois de longa espera é atendido por uma velha senhora. Como falava bem o alemão, ele pede para entrar e chegar à varada. A dona da casa o acompanha em silêncio, até que ele pergunta, apontando para as chaminés do crematório, que ainda podiam ser vistas do lugar onde estavam agora

- O que senhora imaginava que estava acontecendo, quando via uma fumaça saindo daquelas chaminés.

A mulher que até então não parecia assustada, estremece bruscamente e diz:

- Os meus dois filhos morreram na guerra.

Diz Semprún:

"Lança-me como pasto os cadáveres dos dois filhos, protege-se atrás dos corpos inanimados dos seus dois filhos mortos na guerra. Procura fazer-me acreditar que todos os sofrimentos se equivalem que todos os mortos pesam o mesmo"

"Mas os mortos não pesam todos o mesmo, está claro. Nenhum cadáver do exército alemão pesará jamais o peso da fumaça de um dos meus camaradas mortos".

Mesmo assim, ele vacila

"Não tenho forças para lhe dizer que compreendo a sua dor, que respeito a sua dor. Compreendo que a morte dos seus dois filhos seja para ela a coisa mais atroz, a coisa mais injusta. Não tenho forças para lhe dizer que compreendo a sua dor, mas que estou contente por seus dois filhos estarem mortos, isto é, estou contente que exército alemão esteja esmagado".

Hoje, numa cômoda posição de observador, longe do conflito no Oriente Médio, é fácil e talvez seja o politicamente correto, lamentar a morte tanto de judeus como de árabes, mas - como fez Jorge Semprún - é preciso ter coragem para separar opressores de oprimidos e saber que Israel faz com os palestinos algo parecido com o que os nazistas fizeram na Rússia, na Ucrânia, na Polônia e mesmo na França, usando a força bruta para tomar suas terras, expulsá-los de suas aldeias e impedir que tenham acesso às fontes de água doce, cruciais para a sobrevivência naquela árida região e que, portanto, todas estas mortes não iguais.

Nossa imprensa oscila entre duas posições, ambas criticáveis: ou é decididamente a favor de Israel, justificando todas suas agressões contra os palestinos, ou fica naquela cômoda posição de condenar o que chama de "excessos" dos dois lados.

Se ainda estivesse vivo, Jorge Semprún certamente diria com clareza que sempre teve nos seus livros, que mesmo lamentando todas as mortes e compreendendo a dor dos parentes dos mortos, há uma diferença crucial entre ação do agressor que mata e o agredido, que revida, também matando.

Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

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