UM GIBRALTAR NO ESTREITO DE KERTCH

O alto diplomata russo e o seu colega ucraniano, Konstantin Grischenko, vão abordar um leque de problemas delicados nas relações russo-ucranianas, evidentemente com destaque especial para a ilha de Tuzla, no Mar de Azov. Há já quase um mês que esta área pequena de 7 km de comprimento e 500 metros de largura, situada no meio do estreito de Kertch, constitui um nó de Górdio nas relações entre Moscovo e Kiev.

Até 1991 não existia nenhum problema relacionado com Tuzla. Esta área foi retirada da jurisdição da Região de Krasnodar e, por decreto do Praesidium do Soviete Supremo da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, datado de 7 de Janeiro de 1941, passou a fazer parte da península da Crimeia. A 19 de Fevereiro de 1954, esta península passou para a República Socialista Soviética da Ucrânia, mas só a parte continental. A ilha de Tuzla ocupa uma posição estratégica, pois permite controlar a navegação pelo estreito de Kertch e os recursos naturais desta região.

O desmoronamento da União Soviética trouxe a soberania tanto à Rússia como à Ucrânia, surgindo então o problema da delimitação de fronteiras. Devido à sua situação geográfica, a ilha tornou-se um elo-chave deste processo, da mesma forma que a definição do actual e eventual estatuto do estreito de Kertch e do Mar de Azov, em geral.

Basta olhar para o mapa para compreender que a ilha de Tuzla não é senão um novo Gibraltar no estreito que liga os mares de Azov e Negro: ao longo do seu litoral passa um canal navegável. Em Dezembro de 1999, a Rússia e a Ucrânia procederam à discussão detalhada dos problemas relacionados com o Mar de Azov e o estreito de Kertch.

Moscovo defendia e continua a defender o estatuto de mar interno. A parte ucraniana insistia e insiste em dividir o mar, separando-o do Mar de Azov propriamente dito e considerando-o à parte. Kiev considera que se trata de duas bacias separadas, com estatutos diferentes para poder "definir os limites da soberania dos dois países adjacentes". O argumento que adianta é que ainda nos tempos da URSS a fronteira entre a Ucrânia e a Rússia passava pelo estreito de Kertch.

O conflito começou a 29 de Setembro, quando os operários russos procederam à construção dum dique de 4 quilómetros entre a península de Taman (Rússia) e a ilha de Tuzla. A primeira causa e fundamentação da construção do dique foram os problemas ecológicos da referida península. Sucede que antigamente a ilha de Tuzla era uma restinga natural que protegia a península das águas salgadas do Mar Negro. No entanto, nos anos 20, a restinga foi desaparecendo por causa das ondas do mar, formando uma ilha. E então as águas do Mar Negro tiveram acesso directo e imediato ao litoral de Taman, dando origem à sua rápida erosão. Os especialistas dizem duma forma figurada que o mar devora em cada ano que passa três metros do litoral ameaçando cada vez mais as populações com inundações. Quem sofreu primeiro as consequências deste fenómeno foram os pescadores de Taman. As espécies que outrora se concentravam em grandes quantidades na baía de Taman, começaram a mudar de local. Antigamente, na baía as águas doces atraíam valiosas espécies de peixe, como por exemplo a esturjão, a perca, etc. que vinham do lado do rio Kuban. Quando o estreito passou a comunicar com o Mar Negro, as águas salgadas do Mar Negro fizeram com que o peixe deixasse de entrar na baía.

Kiev, que considera a ilha de Tuzla como parte do seu território, interpretou a iniciativa da parte russa de construir o dique como atentado à integridade territorial da Ucrânia e deslocou urgentemente para Tuzla unidades das tropas fronteiriças. Na área do estreito de Kertch os ucranianos começaram os chamados "exercícios preventivos", incluindo o lançamento de mísseis. A responsabilidade pelo "fogo espontâneo" contra os russos foi assumida pelo Presidente da Ucrânia, Leonid Kutchma, que suspendeu a visita oficial aos países da América Latina depois do agravamento da situação na região do Mar de Azov. A 23 de Outubro, a Rada Suprema (Parlamento) da Ucrânia deliberou pedir ajuda à ONU e à NATO, caso a Rússia continuasse os trabalhos de construção do dique.

Para evitar a escalada do conflito fronteiriço, a 24 de Outubro reuniram-se, em Moscovo, os primeiros-ministros da Rússia e da Ucrânia - Mikhail Kassianov e Viktor Yanukovitch, respectivamente, tendo acordado em suspender a construção do dique na área litigiosa. Em troca, Kiev prometeu retirar de Tuzla as suas tropas fronteiriças (mas, para dizer a verdade, não o fez até agora), assim como entrar em conversações sobre o estatuto do Mar de Azov e do estreito de Kertch (é o que Moscovo desejava). A essência do problema resume-se ao seguinte: a Ucrânia pretende dois terços das extensões aquáticas do Mar de Azov e o direito prioritário de explorar as riquezas naturais e biológicas da plataforma continental e do mar propriamente dito. Até hoje foram descobertas 120 estruturas que já extraem ou se preparam para extrair crude e gás natural. Ao todo, são hoje conhecidos 7 jazigos de petróleo e gás. No segmento russo os recursos são avaliados em, aproximadamente, 50 milhões de toneladas de crude e de 150 a 200 biliões de metros cúbicos de gás natural.

O ponto neurálgico do litígio é, sem dúvida, o estreito de Kertch. Calcula-se que através do Estreito de Kertch passem todos os anos cerca de 9 mil embarcações de calados diferentes, seguindo para os portos russos de Azov, Rostov, Taganrog, Ieysk, e Temriuk. Segundo a versão de Kiev, o canal pertence às águas territoriais da Ucrânia e, por conseguinte, todos os navios que passam por ele, inclusive russos, têm que pagar os impostos de navegação, de passagem pelo canal e outros. Assim, as despesas russas por ano expressam-se em 15-16 milhões de dólares. As normas do Direito Internacional preceituam que, no caso de o Mar de Azov ter o estatuto de mar interno - ou seja, dividido entre a Rússia e a Ucrânia -, ambas as partes têm direitos iguais sobre o canal.

Em consonância com a prática jurídica internacional, a Rússia propõe delimitar o Mar de Azov e o estreito de Kertch pelo fundo, deixando a superfície aquática em propriedade colectiva. A proposta ucraniana é diametralmente contrária: dividir as águas e, assim, conservar o seu controlo sobre a navegação. Como uma das variantes para resolver o litígio, os analistas russos propõem conferir ao Mar de Azov um estatuto meramente económico sob a jurisdição de dois países adjacentes - isto é, da Rússia e da Ucrânia. Trata-se assim duma possibilidade real de explorar as riquezas duma forma colectiva, com base em acordos bilaterais, de elaborar as normas de navegação dos navios estrangeiros no Mar de Azov, de proteger as fronteiras russas e ucranianas na direcção da Turquia.

Para concluir, a situação litigiosa em torno de Tuzla é bastante complicada. Talvez, nem a visita do chefe da diplomacia russa a Kiev permita resolver de imediato este conflito. Mas, o principal é que Moscovo e Kiev cheguem a acordo de dar solução ao problema mediante conversações, mediante a definição do estatuto do Mar de Azov e a delimitação mutuamente aceitável das fronteiras nesta região. Ao menos, para que a ilha de Tuzla não se converta num Gibraltar nas relações entre a Rússia e a Ucrânia.

© RIAN

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