Lições do Quirguistão

O que aconteceu no Quirguistão (e aquilo que ainda pode vir a acontecer lá e nos países vizinhos) coloca questões bastante duras, em primeiro lugar, aos governos dos países da Ásia Central. Em segundo lugar, a dois países-chave para a estabilidade da região: a Rússia e a China.

E só em terceiro lugar aos restantes países do mundo. As questões duras implicam as respostas duras, ou mesmo chocantes, incómodas para serem anunciadas em voz alta pelos responsáveis oficiais. Mas alguém terá que as dar.

A primeira pergunta diz respeito ao sistema político de poder pessoal que reina em toda a Ásia Central, caracterizada pela concentração máxima do poder nas mãos de uma só pessoa. Mas os regimes duros, se os tornarmos ainda mais duros, costumam ruir num abrir e fechar de olhos, com efeitos drásticos para o país.

É de notar que a oposição de ontem, que hoje já é governo do país, na prática é a mesma elite quirguize que passo após passo acabou por ficar contra a sua vontade em oposição a Akaev. Estas pessoas tiveram e continuam a ter amigos em Moscovo, Alma-Ata e noutras capitais da região. Estes amigos desejaram-lhes sucesso e a chegada ao poder, mas não podiam apoiá-las abertamente visto que em todas as organizações das quais faz parte o Quirguistão, por exemplo, a Organização de Tratado de Segurança Colectiva ou a Organização de Cooperação de Xangai, não é de bom tom imiscuir-se nos assuntos internos dos países-membros.

O Quirguistão dá-nos um exemplo convincente de que é dos interesses das elites políticas da Ásia Central fazer com que sejam elaborados esquemas de tal ingerência. É que o desmoronamento de um regime ameaça todos os outros. Não é por acaso que todos os vizinhos do Quirguistão fecharam agora as suas fronteiras com este país. Há que encontrar sem demoras formas oportunas de um diálogo de confiança sobre temas inverosímeis até hoje como seja a substituição "planeada" do poder. Na Ásia Central não se trata da escolha entre os "ditadores" e os "liberais pró-ocidentais". Trata-se da escolha entre pessoas normais e aqueles que não têm nada a ver com a política civilizada. Tal não se refere só ao Quirguistão, onde existem líderes dos tradicionais clãs locais capazes de mandar alguns milhares de pessoas pilharem as lojas e abrirem as portas das prisões, para total surpresa mesmo dos líderes da oposição. Verdade seja dita que no contexto das relações tradicionalmente más entre as elites políticas da Ásia Central tal diálogo apresenta-se completamente impossível. É uma pena, pois uma outra alternativa é ainda mais impossível.

Todavia há a experiência mundial de passagem civilizada do poder e da substituição de elites mesmo dos regimes duros, os quais nem sempre são ditaduras. Tal experiência foi realizada com êxito em Singapura e na Malásia, com o seu sistema político praticamente britânico, o qual na Inglaterra admite perfeitamente a presença no poder de Tony Blair mesmo durante toda a sua vida. Não estou seguro quanto ao futuro de Blair, mas os tidos por insubstituíveis primeiros-ministros de Singapura e Malásia anunciaram de antemão na década passada os nomes de seus sucessores, tendo depois da vitória do seus partidos nas eleições parlamentares cedido-lhes o poder. A mesma experiência acabou por ser repetida na China. É de assinalar que em todos os casos tudo isto teve lugar nas condições de crescimento económico.

Impõe-se a este propósito uma segunda questão - isto é, a questão do controlo (ou controlo aparente) da economia. O maior erro de Askar Akaev foi subordinar a si não só o poder político, mas também praticamente toda a economia de um país com cinco milhões de habitantes. Segundo as estimativas do analista do Instituto dos Países da Comunidade de Estados Independenres (CEI) Andrei Grozin, a economia deste pequeno país compunha-se por várias empresas controladas pelos familiares do Presidente, pela ajuda internacional, cujo fluxo também era controlado pelas mesmas pessoas, e por vários mercados grossistas de onde as mercadorias importadas da China se espalhavam pela Ásia Central. Os directores destes mercados e feiras - os bazarkumes - também dependiam de Akaev. O resto eram explorações agrícolas e estruturas criminais no sul do país.

Para os que supunham que a circulação de dinheiro no Quirguistão se encontrava em mãos seguras, foi efectivamente uma surpresa saber ter sido justamente este último segmento de economia que protagonizou os últimos acontecimentos. Conclui-se daí que a mão dura das autoridades não garante o êxito absoluto em tais casos.

A terceira questão consiste em que os duros regimes centro-asiáticos não são suficientemente duros quando é necessário. A defesa da vida e dos bens das pessoas é o valor primordial - o resto está num degrau inferior. Provavelmente Askar Akaev acreditou demais no "paraíso democrático" por ele criado. Com efeito, o Quirguistão era o país mais democrático na Ásia Central. Mas tinha apenas 20 mil pessoas armadas incluindo as forças policiais. E isto é absolutamente insuficiente para enfrentar uma multidão furiosa e embrutecida: nesta situação um polícia normal fará bem se se puser em fuga. Fazer parar uma multidão com o mínimo de vítimas é também uma arte, evidentemente pondo de parte o exemplo de Napoleão Bonaparte que foi primeiro a utilizar canhões contra as manifestações.

Houve quem propusesse a Askar Akaev ajuda militar. Mas ele fez bem em ter renunciado, já que nos países vizinhos a situação é mais ou menos idêntica: exércitos pouco numerosos, falta das tropas especialmente treinadas para enfrentar as multidões.

E existe também a questão da amizade dos povos que depois de uma acção como essa pode vir a ficar afectada. Urge dar uma solução rápida a este problema. A Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC) serve para fazer frente a uma agressão externa e lutar contra os terroristas. Os mecanismos da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) também estão mais apontados contra o terrorismo. E que se deverá fazer se os terroristas ou clãs criminosos apelarem à multidão e conseguirem arrastar para a rua os representantes das camadas sociais mais desfavorecidas, escondendo-se entre a multidão? Não há resposta para esta pergunta. Mas deve haver.

A quarta questão refere-se à necessidade de transformação das sociedades centro-asiáticas e do desenvolvimento acelerado das suas economias. Para dar início a este processo existem todas as condições: a recuperação da Rússia depois dos abalos sucessivos da década de noventa, os êxitos do Cazaquistão assentes na economia petrolífera, a China como investidor internacional cada vez mais activo, a Índia e o Irão que olham com muito interesse para esta região. Pois, a situação parece ideal. Teoricamente, sim. Mas para pô-la em prática, a Ásia Central tem que convencer os seus parceiros de serem capazes de se defender de acontecimentos análogos aos do Quirguistão, de serem capazes de criar sistemas políticos que não se centram exclusivamente nos líderes nacionais.

E por último, a quinta questão diz respeito à importância das eleições nos processos políticos que se verificam nos países semelhantes ao Quirguistão. É preciso declarar claramente: é melhor implantar monarquias absolutas e vitalícias do que realizar eleições em que a oposição se prepara "a priori" para não reconhecer os seus resultados e como passo seguinte chamar o povo para a rua. Em algumas sociedades esta situação transforma-se em "revolução de veludo", tornando ridículas as eleições como tais. Contudo, no Quirguistão os acontecimentos tomaram outro rumo: não foi a oposição que arrastou o povo para a rua e tudo o que se passou não foi ridículo. Agora os líderes do país têm que dar provas de serem capazes de dominar a situação criada.

É bem patente a perplexidade e até talvez o sentimento de culpa das fundações e organizações europeias e norte-americanas que sincera e activamente prepararam as mudanças em mais um país e o levaram, no fundo, ao fracasso contundente e ao descrédito. Provavelmente, Askar Akaev experimenta agora os mesmos sentimentos, tendo transformado o Quirquistão num país de organizações não-governamentais de todo o mundo. Não adianta esperar que estas pessoas se reconheçam total ou parcialmente responsáveis pela situação que se produziu. A Ásia Central tem todo o direito moral de criar um precedente, declarando abertamente fora da lei toda e qualquer ingerência externa no processo eleitoral nacional. Esse direito deve se conjugado com a obrigação de criar um sistema político que funcione adequadamente e esteja de acordo com as particularidades das sociedades locais. "

Dmitri Kossyrev observador político RIA "Novosti

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