A significância da vitória do Syriza

A vitória da aliança esquerda radical, Syriza, nas recentes eleições gregas não deveria ser encarada só como um fenómeno grego, nem tão pouco como um fenómeno cuja significância está confinada apenas à Eurozona. No conflito entre a finança e o povo que actualmente devasta o mundo todo, a Grécia emergiu como um ponto onde o povo enfrentou o poder da finança e por enquanto está a repelir sua ofensiva política. 

por Prabhat Patnaik [*]

O PRINCÍPIO DE UM PROCESSO 

 

Discutir puramente dentro do contexto grego o que o Syriza em si pode fazer com esta vitória, como faz actualmente a maior parte dos comentadores, é simples escolástica. A vitória do Syriza não é o fim de um processo; ao contrário assinala o seu princípio. Assim como a significância de uma batalha particular numa guerra tem de ser julgada pelo modo como afecta a guerra como um todo, da mesma forma a significância dos desenvolvimentos gregos deve ser julgada com base no modo como afectam esta guerra entre os trabalhadores do mundo e o capital financeiro internacional; e o resultado desta mesma batalha depende de como afecta a guerra como um todo, razão pela qual discutir o que pode ou não pode acontecer à Grécia isoladamente é escolástica absoluta. 

 

Naturalmente, muitos países latino-americanos onde há forças de esquerda no poder também resistem à hegemonia do capital financeiro internacional, mas o caso grego é diferente destes países. A singularidade do caso grego decorre do facto de que a cólera do povo na Grécia vai directamente contra as "medidas de austeridade" impostas pelo capital financeiro e implementados em toda a Europa pelo FMI, BCE e UE. O povo grego, por outras palavras, tem enfrentado directamente o poder do capital financeiro, o qual, na campanha eleitoral, tentou aterrorizá-lo com terríveis consequências caso a Grécia renegasse seus anteriores acordos de austeridade; mas tais ameaças não impediram o povo de votar pelo Syriza. 

 

Mesmo agora, depois de os resultados eleitorais terem sido declarados e Alexis Tsipras ter tomado posse como o novo primeiro-ministro, isto é, depois de o povo da Grécia ter decisivamente resistido à agenda de austeridade que lhe foi imposta, a União Europeia emitiu uma "dura advertência" à Grécia de que se deve cingir aos seus compromissos de austeridade e da dívida. A UE portanto quis coagir o novo governo grego a repudiar o mandato que lhe fora dado pelo povo grego e, ao invés, a obedecer ao mandato ditado pelo capital financeiro (o que incidentalmente mostra quanto respeito a UE tem pela democracia); mas o que é notável é que estas tácticas de terror não tiveram o efeito desejado. 

 

Isto é pouco surpreendente. A revolta do povo grego contra a ditadura da finança (uma ditadura que está mais ou menos subjacente a toda democracia burguesa no mundo contemporâneo e continuará a agravar-se por um período de tempo indefinido a menos que os povos intervenham, como na Grécia), está enraizada no seu sofrimento agudo sob o regime de austeridade. Sob este regime o produto da Grécia caiu cerca de 26 por cento; a sua taxa de desemprego situa-se actualmente nos 25,5 por cento, com o desemprego juvenil em 49,6 por cento; seus salários mínimos foram cortados em um terço; seus salários nominais caíram em 16 por cento no sector privado e em 23,5 por cento na generalidade. E o governo grego durante este período de cinco anos despediu cerca de 19 por cento da sua força de trabalho. Pessoas têm sido desligadas da rede eléctrica e foram-lhes negados produtos farmacêuticos básicos. 

 

Além disso, esta penúria decorrente da austeridade está longe de ultrapassada. Na verdade, o FMI prevê mais penúria nos próximos anos, projectando um desemprego ainda mais alto que chega aos 15,8 por cento em 2018 ?– uma década inteira após o princípio da crise. E o FMI espera que em 2019 o PIB grego venha a estar mais de 9 por cento abaixo do PIB anterior à crise de quase 12 anos atrás. 

 

O que o Syriza se propõe a fazer é restaurar a negociação colectiva e os direitos básicos dos trabalhadores, reconectar pessoas à rede eléctrica e elevar o salário mínimo, medidas que exigem o abandono das políticas de austeridades impostas à Grécia. O Syriza não pretende deixar o Euro, mas quer uma redução da dívida, sem a qual naturalmente qualquer abandono da austeridade não será factível. Uma vez que grande parte da própria dívida tem sua origem no facto de que era preciso pagar juros sobre a dívida anterior através de fundos recém emprestados (em grande medida do mesmo modo como a dívida para com usurários de aldeia mantém-se a crescer), as reivindicações do Syriza, longe de serem revolucionárias, são na verdade bastante modestas. E ainda assim, como vimos, a primeira resposta da União Europeia à vitória do Syriza foi advertir que se renegasse a dívida e compromissos de austeridade então a condição de membro da UE ficaria em perigo. 

 

O abandono da austeridade na Grécia não só fortalecerá a democracia ali e portanto na Europa em geral como também assegurará um crescimento mais alto no país, o que não pode senão ser benéfico para a recuperação das economias atingidas pela crise da Eurozona como um todo. De mais a mais, tais cancelamentos (write-offs) e reescalonamentos de dívida, como a Grécia está a pedir, não são de modo algum sem precedentes na história do capitalismo. A economia alemã não teria recuperado tão rapidamente como o fez das devastações da Segunda Guerra Mundial se não lhe tivesse sido concedido um substancial alívio da dívida. E no empréstimo dos EUA ao Reino Unidos após a Segunda Guerra Mundial, o qual foi negociado pelo bem conhecido economista J.M. Keynes, uma das condições foi de que o Reino Unidos começaria a reembolsar o empréstimo só quando a sua economia se houvesse recuperado numa certa medida especificada. 

 

Na verdade, um grupo de economistas, encabeçados por Joseph Stiglitz, mencionou estes muitos precedentes a fim de pedir que à Grécia fosse dado um alívio semelhante da austeridade e que à sua economia fosse permitido crescer, mesmo enquanto o seu sistema económica fosse reformado pelo governo Syriza para assegurar maior cumprimento fiscal por parte dos ricos. A ausência de cumprimento fiscal é uma das grandes causas para o fraco estado das suas finanças públicas e a sua remoção teria o mesmo efeito, quando se trata de fechar o défice orçamental, quanto a imposição de austeridade, mas sem o carácter anti-povo desta ultima. 

 

A pergunta que naturalmente se levanta é: por que o capital financeiro deveria insistir em impor austeridade quando a política exactamente oposta, nomeadamente o abandono da austeridade, podia não só funcionar em benefício do povo como, ao promover alto crescimento, resultar também no reembolso pleno da dívida, como todos estes economistas argumentaram tão persuasivamente? 

 

Esta pergunta não é específica à Grécia ou mesmo ao reembolso em si de dívidas. Afinal de contas, no mesmo estado de espírito alguém podia perguntar: por que deveria ser exigida "responsabilidade orçamental" (envolvendo na melhor das hipóteses um minúsculo rácio entre o défice orçamental e o PIB) no mundo de hoje, quando toda a economia mundial ainda está presa numa crise grave de insuficiente procura agregada e quando cortar despesas governamentais, o que a tal "responsabilidade orçamental" tipicamente implica, só torna as coisas piores? 

 

A "PROPENSÃO SANGRENTA" DO CAPITALISMO 

 

Por outras palavras, o comportamento do capital financeiro em relação à economia grega exibe um aspecto do capitalismo que é intrigante e ao mesmo tempo central ao seu carácter. Este consiste naquilo, que na ausência de melhor expressão, poderia ser denominado como a "propensão sangrenta" do capitalismo: sempre que surge uma opção entre dois caminhos alternativos para a resolução de um problema que o confronta, um que envolva uma melhoria nas condições do povo e outro que envolva o seu esmagamento, a preferência do capital é invariavelmente por este último caminho. E isto é assim mesmo quando o segundo caminho, que é o preferido, não resolve realmente o problema mas apenas parece ao capital como se o fizesse. 

 

O exemplo clássico é um corte do salário real durante uma crise em oposição a um aumento na despesa real do governo. A última opção é seguro que alivia a crise (como o faria um aumento do salário real, embora não estejamos a falar acerca disso, uma vez que de qualquer forma o capital nunca o permitiria), ao passo que a anterior, muito embora pareça aliviar a crise (ao supostamente restaurar a lucratividade), realmente pioraria a crise. Mesmo assim, a preferência do capital é pela primeira, como é evidente ainda hoje quando direitos dos trabalhadores estão sob ataque por toda a parte enquanto está a ser exigida a "responsabilidade orçamental". Esta "propensão sangrenta" é precisamente o que impediria o capital financeiro de consentir em qualquer reescalonamento ou cancelamento de dívida para a economia grega. 

 

Naturalmente, há ocasiões em que o capital é forçado a abandonar a sua "propensão sangrenta", como o fez por exemplo durante o período do pós-guerra quando a gestão da procura keynesiana para manutenção em alta do emprego foi aceite por este. Na Europa tal gestão da procura assumiu mesmo a forma de despesas governamentais mais amplas ao empreender medidas de "estado social" ("welfare state") (embora na América assumisse a forma de despesas militares mais vastas). Mas o capital acedeu à despesa estatal mais vasta como meio de ultrapassar a crise só porque tinha de o fazer, isto é, só porque na conjuntura do pós-guerra havia uma ameaça socialista séria e porque a classe trabalhadora em todo o mundo capitalista havia adquirido maior militância e poder (o que se reflectiu muitas vezes na ascensão da social-democracia ao governo), ele tinha poucas opções no assunto. Mas quando teve êxito em consolidar-se e o período de vulnerabilidade do pós guerra foi ultrapassado, o capital repeliu a gestão keynesiana da procura e actuou para impor a responsabilidade orçamental, como acontecia antes. 

 

Por outras palavras, o capital aceitará o veredicto democrático do povo grego só quando a sua posição se tornar vulnerável, só quando o "contágio democrático" propagar-se da Grécia para a Espanha, para outros países no Sul da Europa e ainda mais além. Eis porque o que acontece na Grécia relaciona-se com o modo como os desenvolvimentos ali influenciam desenvolvimentos alhures. Como mencionado anteriormente, o resultado da batalha na Grécia dependerá de como esta batalha afecta a guerra entre a finança e o povo que se está a verificar por toda a parte do globo. Entretanto, as forças progressistas por toda a parte deveriam saudar o povo da Grécia e apoiá-lo nesta batalha, enquanto fortalecem o seu próprio empenhamento na guerra como um todo. 

01/Fevereiro/2015

 

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia 

 

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2015/0201_pd/significance-syriza's-victory . Tradução de JF. 

 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

 

 

http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=d8adc4c062bbf67846a3608544208c0e&cod=15028

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