Meu amigo Luiz Antonio de Farias, o Capiá, funcionário aposentado do Banco do Brasil e cronista dos bons, recentemente escreveu uma crônica intitulada "O Turco de Delmiro Gouveia". Capiá nos conta que Miguel Gandur, um turco que prestava serviços para o Banco do Brasil, nos anos 60, na cidade de Delmiro Gouveia, sertão alagoano, decidiu vender seu carro a uma pessoa de reconhecida reputação, muito conceituado no local por sua honestidade e seriedade. O negócio foi concretizado de forma que a metade do pagamento seria feita no ato da compra e o restante trinta dias depois. Contente com a confiança que o vendedor lhe depositara, o comprador decidiu tranqüilizá-lo ainda mais:
Seu Miguel, não se preocupe, que na data combinada eu lhe pago a segunda parcela, porque costumo honrar meus compromissos e o único defeito que tenho é ser pobre.
O turco arrebatou a chave do carro das mãos do comprador e replicou:
Meu caro, negócio desfeito. Você tem o pior defeito que um homem pode ter.
À parte o bom humor da história, lembrei-me do professor Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank, em Bangladesh, que não deve ter o mesmo conceito do turco Gandur sobre pessoas submetidas a condições de pobreza. A instituição financeira bangladeshiana é hoje exemplo de atendimento a pessoas pobres impossibilitadas de contrair empréstimos nos bancos, por falta de "garantia". A taxa de inadimplência é de aproximadamente 1,3%, enquanto nos bancos comerciais no Brasil o índice chega a 7% e cresce a cada dia. O sucesso do Grameen Bank foi tal que o banqueiro Muhammad Yunus faturou o Nobel da Paz em 2006.
Estima-se que o governo dos EUA gastou, nos últimos 50 anos, cerca de 4 trilhões de dólares em armamento. Provavelmente, somando-se tudo que o "resto do mundo" gastou com a produção de armas no mesmo período, deve-se alcançar a mesma cifra, considerando-se que a antiga URSS, durante muitos anos, competiu com os ianques na corrida armamentista. China, França, Inglaterra e tantos outros também apostaram seus muitos bilhões de dólares na indústria da morte. Teríamos, portanto, aplicado uns 8 trilhões de dólares, em 50 anos, com o objetivo de ceifar vidas e se apossar das riquezas alheias. Se apenas a metade desses recursos tivesse sido destinada ao combate à miséria, através de atividades produtivas, certamente o mundo hoje seria outro. Bem melhor, claro. Imaginemos 4 trilhões de dólares investidos em: educação, atendimento à saúde das populações carentes, microcrédito, agricultura, pecuária, habitação, indústria alimentícia, transportes, estradas, ferrovias, cultura, lazer, segurança pública, segurança do trabalho, combustíveis alternativos, despoluição, esportes, artes, reflorestamento, enfim, no respeito à vida. Seria um grande passo para a realização daquilo que hoje consideramos uma utopia: uma prolongada paz mundial.
Pobreza & Violência
Também em Alagoas, há quatro anos, ocorreu o assassinato de um jovem numa churrascaria anexa a um posto de gasolina. O crime foi motivado por uma discussão banal entre pessoas desconhecidas entre si. O assassino, um policial envolvido em muitos outros assassinatos, daquela vez acabou perseguido pela polícia, preso e condenado. Encontra-se cumprindo pena sem qualquer esperança de obter liberdade após o cumprimento de um sexto da pena, mesmo que apresente muito bom comportamento. Acontece que a sua última vítima era um jovem filho de influente empresário alagoano, usineiro com investimentos em diversos ramos empresariais; sem dúvida, uma pessoa de índole pacífica, pois, do contrário, o assassino não estaria cumprindo pena, mas de pés juntos em cova rasa.
Impressionante nessa história foi a declaração do assassino ao tomar conhecimento da condição social de sua vítima. Um repórter lhe perguntou se não estaria arrependido de ter matado um jovem que tinha perspectivas de um brilhante futuro. O assassino respondeu se desculpando pelo erro cometido e tentou se justificar dizendo: "Eu não sabia que ele era rico!".
Existe quem defenda a tese de que as condições de pobreza, por si próprias, são fatores que induzem o indivíduo à violência. Pessoas que sustentam tal argumento estão equivocadas ou minadas pelo preconceito social. Elas acreditam, ou dizem de má-fé, que as nossas favelas seriam ambientes potencialmente violentos apenas pela condição social dos seus habitantes.
Pobreza, principalmente do grau que conheço, é doença social que facilmente se alastra, como metástase cancerosa, até a falência dos tecidos sociais à sua volta, fazendo surgir os chamados bolsões de miséria. Porém, se alguém nasce e sobrevive em condições de pobreza, mas estimulado por reais expectativas de mobilidade social ascendente, ou, pelo menos, de se manter com a dignidade de quem não carece do estritamente necessário, sem a necessidade de implorar por um atendimento hospitalar, sem ser obrigado a assistir ao choro dos filhos famintos nem se submeter a tantas outras humilhações, pessoas nessas condições estariam sujeitas apenas à violência natural do ser humano (em "natural", aí, considerem-se apenas os efeitos emanados do grau de evolução social que já alcançamos, sem conotações de supostas tendências de origem biológica).
As áreas caracterizadas por graves necessidades de recursos necessários à subsistência humana, como existem no nosso país e em praticamente todo o mundo capitalista, acabam se tornando, sim, ambientes potencialmente violentos. Entretanto o motivo não pode ser atribuído simplesmente à condição de pobreza de seus habitantes, mas ao descaso com que são tratados pela própria sociedade. Milhões de pessoas que constroem suas casas, barracos, cômodos, puxadas, "meiáguas", em favelas e subúrbios, assim como nas zonas rurais, geralmente comemoraram essas conquistas. Muita felicidade sentiu o trabalhador que conquistou um modesto emprego e, seguindo-se a isso, traçou muitos planos para o futuro. Quanta gratidão a gente ouve e sente de pessoas a quem prestamos um pequeno favor? Fala-se tanto em "cada um fazer sua parte". O que estariam essas pessoas fazendo senão a sua parte?
E a parte de quem deveria cuidar do bem público? Geralmente cobramos as omissões dos administradores públicos como se eles cometessem apenas "falhas", até expressamos indignação, mas reconhecendo somente como "descumprimento do dever", quando na verdade essa é a verdadeira fonte da violência, é aí que se encontram os verdadeiros criminosos, responsáveis pela formação de legiões de miseráveis sem qualquer esperança.
O trabalhador que morre ou fica mutilado devido aos milhares de acidentes de trabalho é tão vítima da violência quanto o que morre por bala perdida (inúmeras vítimas, em ambos os casos!). Crianças que morrem por falta de atendimento hospitalar são tão vítimas da violência quanto as que morrem em tiroteios entre quadrilhas rivais ou com a polícia.
Se a violência das favelas estivesse restrita aos seus limites geográficos, pouca ou nenhuma atenção seus moradores receberiam das autoridades, da imprensa e dos privilegiados em geral. Pobreza não é causa de violência; no entanto gerar pobreza e abandoná-la à própria sorte é uma das mais hediondas formas de violência que conheço.
Relacionemos tudo que possa gerar doença, morte e desestruturação familiar. Trabalhadores a quem não se concedem as mínimas condições de cuidar de seus próprios filhos são obrigados a cuidar, diariamente, mal remunerados, das crias bem-nascidas. Lavam e passam roupas, cuidam dos jardins, da alimentação, da "segurança", da casa e de tudo aquilo que o "bem-sucedido" não tem tempo de cuidar, pois está ocupado em ganhar mais dinheiro para garantir o "futuro" dos seus herdeiros, ostentar fortuna e dominar aqueles que são obrigados a deixar os filhos ao deus-dará.
E se Deus não der perna comprida e muita malícia para correr atrás da bola e fugir da polícia?!
Fernando Soares CamposSubscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter