Paraestado: O caso Medellín

Medellín é a segunda maior cidade da Colômbia, com uma população de mais de 2 milhões, sendo importante centro comercial e industrial. Na década de 1980, foi sinônimo do comércio mundial de cocaína, tendo também um histórico de tentativas de paramilitares e narcotraficantes para captar grupos criminosos que atuavam nos bairros pobres.

Isto, mais a presença de milícias guerrilheiras, fez de Medellín a cidade com a maior taxa de assassinatos do mundo. Contudo, o sucesso na consolidação do paramilitarismo e a neutralização da guerrilha fez diminuir essa taxa e motivou o cenário para a primeira desmobilização em grande escala dos paramilitares.

Uma cerimônia televisada marcou a primeira de uma série de desmobilizações, onde o governo Uribe afirma ter afastado do conflito armado 8 mil paramilitares, de um total de cerca de 20 mil. A organização não governamental Anistia Internacional publicou em setembro de 2005 o documento “Os paramilitares em Medellín: desmobilização ou legalização?”, com críticas ao processo. O presente artigo faz um resumo desse informe.

A violação sistemática do direito internacional humanitário tem sido a trágica característica do conflito armado na Colômbia. Nos últimos 20 anos, esse conflito tem cobrado a vida de 70 mil pessoas, a maioria civis assassinados fora de combate e 4 milhões de pessoas enxotadas do seu local de moradia. A maioria dos homicídios, desaparecimentos e torturas de não-combatentes por motivos políticos têm sido obra de paramilitares respaldados pelo exército.

As forças de segurança colombianas têm adotado uma estratégia de contrainsurgência centrada no suposto respaldo da população civil à guerrilha, que considera os civis das zonas de conflito não como vítimas da guerra mas como parte do inimigo. Isto tem levado a abusos sistemáticos e à estigmatização de grupos considerados simpatizantes da guerrilha, como defensores dos direitos humanos, dirigentes camponeses, sindicalistas, ativistas sociais e comunidades que vivem em zonas de presença guerrilheira.

Durante décadas, os latifundiários utilizaram os paramilitares para expulsar os camponeses de terras que pretendiam explorar. Também têm sido úteis para resolver conflitos trabalhistas com táticas de terror contra sindicalistas. Os políticos locais utilizam os paramilitares para eliminar opositores políticos e controlar protestos sociais atacando ativistas. Antes dos ataques paramilitares, membros do alto comando do exército costumam rotular os ativistas e suas organizações de subversivos.

As primeiras milícias guerrilheiras surgiram em Medellín na década de 1980, com as milícias do M-19, seguida pelas Milícias Populares do Povo e para o Povo, as Milícias Independentes do Vale do Aburrá, as Milícias Metropolitanas, as Milícias Bolivarianas (das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Farc) e as milícias do Exército de Libertação Nacional (ELN). Em meados de 1990 surgiu a milícia Comandos Armados Populares, com membros dissidentes do ELN. Em 1994, houve uma aliança entre as Farc, o ELN e várias milícias independentes que levou à criação do Bloco Popular Miliciano, consolidando a presença das forças guerrilheiras em Medellín. Essas milícias foram responsáveis por aplicar justiça nos bairros pobres em operações contra pequenos delinqüentes, viciados em drogas e bandas criminosas, cobrando impostos a empresas locais em troca de proteção e seqüestrando empresários para financiar suas atividades.

O Bloco Metro (BM) surgiu como a primeira presença paramilitar em Medellín a partir de 1998, depois que as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), principal força paramilitar, manifestou seu interesse em controlar a cidade. No ano 2000, o BM havia captado a maioria das bandas criminosas de Medellín e em 2001 era o grupo paramilitar dominante, controlando 70% da cidade em 2002. O Bloco Cacique Nutibara (BCN), liderado por “Don Berna”, surgiu pouco depois como a segunda força paramilitar em Medellín. O BCN tinha uma organização criminosa conhecida como “La Oficina”, que tomou as rédeas do negócio do narcotráfico de Pablo Escobar após a sua morte. “Don Berna” também era o líder do grupo “La Terraza”, um dos grupos criminosos mais temidos de Medellín com vínculos com os paramilitares. Houve um violento confronto entre o BCN e o BM pelo controle de Medellín que terminou com muitas baixas e com o domínio quase total do BCN. Ao final de 2001, os paramilitares haviam consolidado sua presença em várias partes de Medellín. Contudo, uma forte presença de milícias do ELN e das Farc impedia os paramilitares de ficar com o controle total. Operações militares do Exército lançadas em 2002, nas quais foram utilizados helicópteros, tanques e artilharia pesada, deram fim ao controle da guerrilha nessas zonas e permitiram aos paramilitares preencher o espaço deixado pelas milícias. A partir de então, os paramilitares têm ameaçado, enxotado e matado dirigentes comunitários e pessoas acusadas de ter vínculos com grupos de milícias. Também foram atacadas testemunhas de violações dos direitos humanos, bem como parentes das vítimas e pessoas que se negaram a colaborar com os paramilitares.

O sucesso da consolidação do paramilitarismo em 2003 nos bairros pobres de Medellín fez da cidade o cenário ideal para a primeira desmobilização em larga escala dos paramilitares vinculados às AUC, pois ajudava a dar credibilidade ao processo nacional de desmobilização paramilitar, promovida pelo governo Uribe. Antes de sua desmobilização, calculava-se que o BCN contava com mais de 2.000 combatentes, mas apenas se desmobilizaram 860. Acredita-se que a maioria permaneça operando em zonas rurais. Portanto, desde o início ficou claro que a desmobilização não afetaria a capacidade militar do BCN. Após a desmobilização, as estruturas paramilitares permaneceram intactas e continuam sendo recebidas informações de violações aos direitos humanos cometidas por paramilitares.

Na segunda metade de 2004, o controle paramilitar dos bairros pobres de Medellín era cada vez mais encoberto, sem patrulhamento nem armas de grosso calibre. É um controle invisível, com ameaças, com armas camufladas de pequeno calibre, com expulsões dos bairros. Em uma parte da cidade, residentes locais afirmam que foi concedido a um grupo vinculado a paramilitares o contrato de segurança de uma escola. O desenvolvimento destas estruturas de segurança confirma a preocupação manifestada pela Anistia Internacional em novembro de 2003 de que os paramilitares estão se “reciclando” no conflito mediante sua incorporação a empresas de segurança privadas.

Um grupo de paramilitares desmobilizados criou uma rede de paramilitares a partir de uma ONG chamada “Corporação Democracia”, entre os quais havia comandantes do BCN que evitaram o processo penal por violações aos direitos humanos e reapareceram na vida pública como dirigentes dessa Corporação. Esta organização está dirigida por Giovanny Marín, líder do BCN, desmobilizado em novembro de 2003. Em abril de 2005 foi revelado que Marín seria candidato às eleições ao Congresso de março de 2006.

Medellín é o doloroso exemplo do fracasso da estratégia de desmobilização do governo Uribe. À maioria dos paramilitares foi concedida anistia por crimes de lesa humanidade, enquanto continuam na ativa exercendo controle sobre muitas áreas da cidade. Civis, defensores dos direitos humanos e ativistas comunitários, seguem recebendo ameaças e sendo objeto de agressões. A taxa de homicídios em Medellín caiu, mas o Estado de direito não está garantido, pois qualquer tentativa de questionar ou desafiar o controle das forças paramilitares tem como resposta a violência política.

O paramilitarismo, tanto em Medellín como em outros lugares da Colômbia, não foi desmontado, mas “reinventado”. Uma vez que foi retirado das guerrilhas o controle de muitas zonas da Colômbia, e nelas foi estabelecido um férreo controle paramilitar, não há mais necessidade de contar com grandes contingentes de paramilitares uniformizados e fortemente armados. Em vez disso, os paramilitares começam a contribuir como civis na estratégia de contrainsurgência dentro de estruturas legais, como empresas privadas de segurança e redes de informantes. Nesta última fase, os paramilitares permanecem na sombra, cuidando de novos ataques da guerrilha, continuando com ameaças, homicídios e desaparições contra opositores civis.

Em Medellín, Anistia Internacional observou este processo que reflete claramente uma fase de legitimação do paramilitarismo, não apenas como uma estratégia de contrainsurgência, mas como um fenômeno com mecanismos de controle político e social e a promoção de um modelo econômico baseado na concentração da terra e em projetos agrícolas, mineiros e de infraestrutura em grande escala. Esta política tem sido montada sobre violações sistemáticas dos direitos humanos, incluídos os deslocamentos em massa de civis, para facilitar a expropriação ilegal de terras, mediante a qual os paramilitares lavam o dinheiro do narcotráfico.

A participação da sociedade civil colombiana e a comunidade internacional nas negociações com os paramilitares tem sido nula. Isto reflete o ceticismo e a preocupação que a sociedade civil e a maioria dos governos estrangeiros sentem pelo processo. A desmobilização não porá fim aos abusos contra os direitos humanos se não forem introduzidas medidas efetivas para garantir que os combatentes sejam realmente desmobilizados. Nesse sentido, a experiência de Medellín pretende ser “exportada” a outras regiões da Colômbia, convertendo assim este país em um paraestado.

* professor da Ufrgs e membro do Comitê de Solidariedade ao Povo Colombiano (El Cuchipe)

O artigo saiu publicado no ultimo numero (139) na revista ADverso (da Associação de professores da UFRGS) e fora tema de apresentação durante o VI Forum Social Mundial em Caracas sob os auspicios da ADufrgs

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