Kamala Harris avança para o passado estadunidense

Kamala Harris avança para o passado estadunidense

Pedro Augusto Pinho*

Os Estados Unidos da América (EUA) já foram um exemplo de progresso, de independência, nunca de liberdade. Esta, conforme a piada, vinda da França encalhou numa ilha em frente à Nova Iorque. E a antiga Ilha de Bedloe (Bedloe Island), rebatizada em 1956 como Ilha da Liberdade, não é, nem pode ser habitada.

A sucessão presidencial que ocorrerá neste ano traz uma surpresa e um desafio para o povo estadunidense: a candidata a vice-presidente na chapa do Partido Democrata.

Primeiro por ser mulher numa sociedade machista, depois por ser negra num país racista. Mas há ainda uma condição mais incrível: a senhora Kamala Harris, casada com um advogado judeu branco, é quem tem a voz ativa na chapa democrata.

E com que discurso? Que são os valores conservadores da sociedade que levarão os EUA a sair da recessão, do caminho que percorre desde que aceitou se curvar ao decálogo do Consenso de Washington. Ou ainda há mais tempo, como poderemos analisar.

Mas, então, ela deveria ser candidata republicana? E aí está o quadro notável para onde a sociedade monetizada de hoje levou um rico Estado Nacional.

Os jornalistas que analisam a política dizem que Kamala representa dois importantes segmentos do poder estadunidense: a tecnologia, modelo Vale do Silício, e as finanças, modelo banca (sistema financeiro internacional).

Realmente, com estes apoios ela só poderia ser candidata democrata. Republicana ela estaria mais confortável representando o complexo industrial-militar, que ainda mantém espaço no poder estadunidense.

Mas por que não se deve esperar mais do mesmo, como ocorre nos EUA, desde 1971, e no Brasil desde 1985?

Pelas qualificações e personalidade da candidata democrata, pode ser uma resposta. Mas um esgotamento das farsas que acompanham aquele país há quase meio século, é mais provável.

Tentemos desenvolver o que se pode esperar e que fatores poderão se levantar contra o poder que ela terá, com grande possibilidade, como vice e, talvez, como presidente.

Embora saibamos que o poder estadunidense é assassino. James Garfield, William McKinley e John Kennedy estão a nos recordar. Seria também o destino da Kamala?

No século XIX, os EUA iniciam sua expansão geográfica e econômica. Os recursos, apropriados por um Estado Nacional que rompera as amarras financeiras com a Europa, são investidos no crescimento. A visão jeffersoniana da nação agrária, imensa comunidade de pequenos fazendeiros, como o folclore sugere e Hollywood fatura, se transforma na realidade de uma sociedade industrial, urbana e apontando problemas no passado.

Após a guerra civil (1861 a 1865) nasce um novo EUA. Alguns historiadores denominam o período 1865-1897 de "era dourada". Segue-se à expansão nacional a Imperial, pela Ásia e pelas Américas. Surge, qual na decadente Europa, um Império. A I Grande Guerra já mostra a mudança que se consolida na II Grande Guerra.

Mas este idílico e irreal sonho pré-secessão ainda rende votos, como demonstrou Donald Trump.

O caminho, que se segue a Bretton Woods, é o da conquista das finanças sobre as indústrias. Começa com as crises pós 1968, especialmente as do petróleo, rompe com este passado em 1971, e triunfa nas desregulações dos anos 1980. O Consenso de Washington é a nova lei que irá prejudicar os próprios EUA, o que se dirá das suas colônias.

Já se desenvolveu uma literatura crítica a estes "30 anos gloriosos" que se seguiram à II Grande Guerra.

  1. Ambrosi, M. Baleste, M. Tacel, "Histoire et géographie économiques des grandes puissances à l'époque contemporaine" (Delagrave, Paris, 1967) apresentam um gráfico que evidencia a distância crescente entre os índices de produtividade e o poder de compra assalariado entre 1923 e 1931. Entre 1955 e 1965, as receitas do Estado em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) passaram de 24,9 para 27,3, recaindo majoritariamente nos assalariados.

No final dos anos 1950, parecia ter se evaporado o sonho americano. Entre 1950 e 1965, os lucros dos investimentos no exterior cresceram quase quatro vezes, nos EUA ficaram, após impostos, quase iguais, com redução em alguns anos - 1951 a 1954 e 1958.

Nos anos Carter, a Comissão Trilateral (EUA, Europa, Japão) começa um processo burocrático que, longe de promover maior entrosamento e harmonia entre os países participantes, jogará uns contra os outros na disputa pelo petróleo. A sequência - queda do Xá no Irã, Watergate, choques do petróleo, derrota no Vietnã, estagflação - leva não apenas os republicanos (GOP - Grand Old Party) ao poder, mas as finanças substituem a indústria na política estadunidense.

O US News and World Report, de 06/05/1991, mostrando a aceleração da dívida pelas famílias, sociedades empresariais e o poder público, nos anos 1980, desenha um ângulo próximo aos 90º em relação à década anterior. É o resultado de duas décadas de importações motivadas pelo preço, sem cuidar das consequências para a Nação.

Mas os estadunidenses comemoram, ingenuamente, a queda do comunismo, o fim da guerra fria como suas vitórias. Logo começam a sentir os efeitos de uma globalização que não beneficiava nem Estados Nacionais, nem trabalhadores, nem mesmo pequenos aplicadores.

Era chegado o poder da banca, das grandes finanças e com ele os capitais ilícitos, das drogas, dos contrabandos, dos crimes de toda a ordem em fundos anônimos dos paraísos fiscais que, então, proliferam.

E as tecnologias tradicionais da indústria cedem lugar à tecnologia da informação, o primeiro setor em ganhos, a frente da construção civil, da produção alimentar, dos automóveis. E os lucros são impressionantes. Há uma reversão nos objetivos para os quais a sociedade não se preparara.

E os EUA, arrogantes campeões numa disputa político-ideológica, estão perdendo as guerras. Aquelas de combates bélicos e pelo comando da sociedade. Hollywood, jornais, canais de televisão vão sendo substituídos pelos sistemas virtuais, conectando não só o país mas o mundo. A "nação insubstituível" amanhece dispensável. Precisa de mil bases militares, ocupar a Europa com o Tratado do Atlântico Norte (OTAN), gastar o dinheiro que não mais produzem nem lhes chega do exterior, pois as finanças internacionais não são boas contribuintes. E para o quê?

Os EUA que irão às urnas foram enganados pelo conto jeffersoniano de Trump. Irão repeti-lo? A pandemia da Covid 19 abriu muitos olhos. A Rússia, destroçada em 1990, hoje aparece vencedora de guerras quentes e tecnológicas, e já apresenta a vacina protetora do corona vírus. Idem para China, dirigida por um Partido Comunista. E os EUA? Continuam importadores, cada vez mais endividados.

O projeto das esquerdas estadunidenses é basicamente identitário, se não nas propostas ao menos nos discursos. E as esquerdas, após décadas de serem consideradas inimigas dos EUA, tem dificuldade de se impor pelo voto.

Kamala é a personificação das causa identitárias sem fazer delas seu discurso. Como a descreveu a jornalista Lúcia Guimarães, em 13/08/2020, na página A11 da Folha de S.Paulo, Kamala tem "uma narrativa pessoal rica para inspirar o exausto eleitor americano". Sua mãe indiana se doutorou em Berkeley, Califórnia, e a candidata formou-se em Howard, Washington.

Sendo conservadora, ela poderá modificar mais a realidade social do que, nos EUA, um candidato marcado por projeto transformador ou reformista. São as contradições que já tivemos, no Brasil, com a política externa independente de Geisel e seu desenvolvimentismo na orientação do Estado Novo.

Mas as pressões serão sempre intensas e até perigosas. Pode ser que Kamala Harris, ao final, seja a senhora Douglas Emhoff, do marido judeu, conservador, de um grande escritório de advocacia dos banqueiros estadunidenses.

A situação brasileira tem semelhanças com a estadunidense. Caímos também no conto do vigário das finanças apátridas. Os países têm dificuldades políticas, muito mais do que econômicas. A solução envolve tributar os ganhos financeiros e investir na produção nacional de bens de consumo. Assim, ao lado da elevação de receitas haveria a criação de emprego, revitalizando o País. E seria bom para todos, se os EUA deixassem o ímpeto de xerife do mundo, e a elite brasileira o complexo de vira-lata.

*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado.

 

 

 

 

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