Não.
Não estou esquecido de como Mário Soares colocou o socialismo na 'gaveta'. De como usou e incentivou preconceitos anti-comunistas, desempenhando um papel contra-revolucionário após o 25 de Abril de 1974.
Nem estou esquecido de como Mário Soares foi primeiro-ministro em governos de coligação, primeiro com o CDS, depois com o PSD, e nunca procurou verdadeiramente governar à esquerda, nomeadamente com o PCP.
Mas o que está agora em causa é o próximo mandato de Presidente da República: quem e como o irá desempenhar?
Jorge Sampaio tem sido um presidente um tanto inócuo, demasiado apagado. Mas quando convocou eleições legislativas antecipadas, e derrubou o governo de Santana Lopes, veio relembrar a importância do cargo.
Ao Presidente da República não compete governar, mas, fundamentalmente, ser um símbolo e um pilar para um bom funcionamento do Estado e para a afirmação de Portugal no mundo.
Nenhuma das candidaturas já apresentadas à esquerda - de Luís Filipe Guerra, do Partido Humanista, de Jerónimo de Sousa, do PCP, e de Francisco Louçã do Bloco de Esquerda - será uma verdadeira alternativa para a presidência da República.
Serão essencialmente iniciativas de afirmação partidária. Defenderão muito legitimamente um pluralismo de ideias e convicções. Poderão ajudar a mobilizar eleitorado. Mas poderão também ter o efeito contrário. E desenvolver sectarismos estéreis.
Um exemplo. Aconteceu um dia ou dois depois de o PCP ter apresentado a sua candidatura. Surgiu, publicamente, um dos ideólogos deste partido, Miguel Urbano Rodrigues, a defender a opção seguida pelo PC do Chile nas últimas eleições presidenciais naquele país: até numa segunda volta se recusou a apoiar o candidato do Partido Socialista local perante uma forte candidatura ultra-direita de um sucessor do antigo ditador anti-comunista August Pinochet... Foi por uma unha negra que este último não ganhou! Argumentou o PC Chileno que a candidatura promovida pelo PS local não era verdadeiramente de esquerda!...
Pois. A candidatura de Mário Soares também não é uma candidatura verdadeiramente de esquerda. Mas...
Goste-se ou não da sua pessoa e do seu percurso ideológico:
1) Ele é seguramente o político português mais conhecido e prestigiado por esse mundo fora.
2) Os seus dois mandatos como presidente coincidiram com os governos do PSD (de direita), liderados por Cavaco Silva. Ao contrário deste último, que deverá ser o seu verdadeiro adversário nestas eleições presidenciais, Mário Soares deixou bem clara a sua capacidade de ser um presidente activo mas que não desestabilizará o Estado querendo "mandar" na vez do governo - o que na presente situação de crise que o País atravessa seria certamente desastroso.
3) Nenhum dos outros candidatos terá o seu pluralismo e capacidade de diálogo. Nomeadamente com todas as principais forças políticas do país. Recorde-se, por exemplo, que já governou em coligação com o PSD e com o CDS. Já foi eleito presidente uma vez com o apoio do PCP e das forças que deram depois origem ao Bloco de Esquerda. E outra vez com o apoio do PSD.
O percurso político de Mário Soares deixa bem claro que é basicamente um adepto da chamada "democracia burguesa". E que não é um homem verdadeiramente de esquerda.
Mas também deixa bem claro que, ao contrário de Cavaco Silva, não tem uma tendência autoritária capaz, por exemplo, de distribuir pancadaria à descrição pela Marinha Grande e pela Ponte 25 de Abril - lembram-se?
E deixa ainda bem claro que, ao contrário de Cavaco Silva, não é defensor de um neoliberalismo extremado, em que, por exemplo, o orçamento de Estado fosse estipulado por uma comissão independente do poder político que, apesar de todos os seus muitos defeitos, ainda é eleito ou "despedido" com os votos dos cidadãos comuns e ainda tem minimamente de atender aos interesses das populações.
O principal argumento que tem sido esgrimido contra a candidatura de Mário Soares é que "aos 80 anos já não tem idade para ser candidato".
Isso é um preconceito primário. Inequivocamente errado. E inadmissível. As palavras velho ou idoso não são sinónimo de lixo ou invalidez! A vida aí está todos os dias a mostrar como há pessoas de meia idade ou mesmo jovens que morrem cedo ou cedo ficam incapacitadas. E como há pessoas que se mantêm bastante activas até uma idade bem mais avançada do que 80 anos.
Três exemplos:
O maior estadista alemão do século XX, Konrad Adenauer... que idade tinha quando se candidatou pela última vez à chefia do governo? 83 anos. Ganhou. Cumpriu o mandato até ao fim. E ainda teve depois vários anos para gozar a reforma...
Aquele que foi de longe o melhor chefe de governo na Índia, Jyoti Basu. Já era idoso quando chegou ao poder. Onde se manteve activamente até à beira dos 90 anos...
Azeredo Perdigão manteve-se activamente à frente da gestão da Fundação Calouste Gulbenkian até aos 95 anos de idade...
Luís Carvalho PRAVDA.Ru
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter