Comunidades tradicionais

Participantes do I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais acreditam que é necessário que as diversas populações e suas organizações façam alianças para fortalecer poder de pressão, mas chamam a atenção para o risco representado pela tendência do governo em homogeneizar seus programas. Representantes defendem que políticas públicas levem em conta as peculiaridades de cada segmento.

Índios, quilombolas, quebradeiras de côco de babaçu, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, sertanejos, açorianos, pantaneiros, geraizeiros, jangadeiros, fundos de pasto, faxinais, açorianos, pomeranos e até ciganos. Grupos das mais diferentes regiões do Brasil cujos hábitos, origem, religiosidade e formas de organização são desconhecidos pela maioria dos brasileiros (saiba mais). Reunir toda essa enorme diversidade sócio-cultural para enfrentar o desafio de elaborar uma política nacional de desenvolvimento sustentável voltada às populações tradicionais foi o desafio do I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais, ocorrido de quarta a sexta-feira da semana passada (17 a 19 de agosto), em Luziânia (GO), a 50 km de Brasília.

A regularização fundiária foi a grande unanimidade entre as reivindicações dos representantes de populações presentes ao evento. A integridade de grande parte dos territórios tradicionais está seriamente ameaçada por pressões do agronegócio, de grandes mineradoras, imobiliárias e da indústria do papel, por exemplo. Depois do direito à terra, as comunidades também exigem a garantia de acesso aos recursos naturais das áreas que habitam; educação e atenção à saúde diferenciadas; o acesso à documentação civil; e que não sejam mais criadas Unidades de Conservação de proteção integral sobre suas terras.

Organizado pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais do governo federal (veja decreto de criação), o evento reuniu, por três dias, quase cem pessoas, entre representantes de populações e entidades, pesquisadores e técnicos dos vários órgãos públicos envolvidos com a questão. O encontro também teve o objetivo de discutir o próprio conceito de comunidades tradicionais e fazer um levantamento das políticas públicas que já existem para atendê-las. Também foram escolhidos os 15 representantes da sociedade civil que deverão integrar a Comissão, que antes era formada apenas por representantes de 13 ministérios e que passa agora a ser paritária. O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) detém a presidência do colegiado e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) a sua secretaria-executiva. (Confira abaixo a lista completa de reivindicações, diretrizes de linhas de ação definidas no encontro e os representantes da Comissão Nacional).

"Fazendo a integração das políticas que já existem e outras que estão sendo criadas, a partir da criação da Comissão, nós estaremos inscrevendo essas demandas e essas comunidades no mapa econômico, social e cultural do País", garantiu a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ela e o mininistro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, receberam das mãos dos participantes do encontro a lista com suas principais reivindicações, em Brasília, na sexta-feira, ao final dos debates. A ministra disse que, como já existem várias iniciativas específicas do governo federal voltadas para as comunidades tradicionais, muitas das solicitações já estarão sendo atendidas no orçamento de 2006. "Não estamos trabalhando para as comunidades, mas com as comunidades."

Peculiaridades

Para a maioria dos representantes de populações tradicionais, o encontro foi positivo porque representou um espaço democrático de consulta e discussão. Fica a dúvida, entretanto, se as reivindicações levantadas terão um encaminhamento político ágil. “Este foi um governo que avançou na legislação, no processo de diálogo com o movimento quilombola, que deu visibilidade e que pautou isso. No entanto, concretamente, no processo de titulação, a gente não consegue visualizar, apalpar”, resume Jô Brandão, da Coordenação Nacional de Quilombos (Conaq). Apenas dois títulos de territórios de quilombos foram expedidos pelo govero Lula, mas, segundo a integrante da Conaq, eles "não foram efetivados e têm muitos problemas". No País, existiriam ainda mais de duas mil comunidades quilombolas sem titulação (leia mais). Jô Brandão volta a fazer a crítica recorrente de que falta articulação e compartilhamento de informações entre os vários órgãos públicos envolvidos com as políticas para o setor. “Por que o governo não cria um mecanismo com uma metodologia para integrar as ações para que se tenha um efeito muito mais positivo?”

“Unificar as demandas é não levar em conta especificidades. É este o direito que sempre temos reivindicado: que sejamos reconhecidos na nossa diferença”, continua a quilombola. Ela acredita que é necessário que as diversas comunidades tradicionais e suas organizações façam alianças para fortalecer seu poder de pressão, mas chama a atenção para o risco representado pela tendência do governo em homogeneizar seus programas. Jô defende que as políticas públicas levem em conta as peculiaridades de cada segmento. “A pobreza quilombola não é igual à pobreza indígena. Ser pobre indígena, ser pobre quilombola não quer dizer que eu não tenha potencial de solução e de sustentabilidade da minha vida. Quando você pensa as comunidades tradicionais, os empobrecidos pelo viés da pobreza, unicamente, você incorre o erro de não pensar essas pessoas com suas potencialidades de desenvolvimento”.

“A questão da terra está muito devagar. A gente vem mantendo a interlocução com outros órgãos do governo, principalmente Ministério do Desenvolvimento Agrário e Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], buscando formas de avançar. Eu reconheço as dificuldades. Agora tem uma burocracia ali que emperra”, admite Jorge Zimmerman, diretor de Agroextrativismo do MMA e um dos coordenadores da Comissão Nacional. Ele lembra que uma das atribuições do colegiado é justamente pressionar e sensibilizar os diferentes órgãos do governo federal para tentar acelerar as ações voltadas às comunidades tradicionais.

Zimmerman explica que, a partir do que foi identificado no encontro, a Comissão fará uma seleção entre questões que podem ser resolvidas rapidamente e outras que demandarão negociações e processos mais complexos. “Acho que na questão da terra a gente vai fazer muita pressão, vai buscar formas. Na questão do marco regulatório de acesso dessas populações aos recursos públicos, também acho que a gente pode avançar no sentido de regulamentar algumas coisas e viabilizar o acesso mais fácil”.

Quebradeira de côco de babaçu, extrativista e quilombola

“A gente conseguiu fortalecer [a discussão] no sentido de ver as convergências e aquilo que constitui a especificidade de cada categoria. Cada um tem a sua luta, o seu movimento e as suas formas de encaminhamento, mas aqui o objetivo é maior”, responde Aderval Costa Filho, coordenador do Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais e Específicas do MDS, quando questionado sobre o andamento das discussões a respeito do conceito de comunidade tradicional. Ele explica que há determinados grupos que têm identidades e atributos múltiplos. Uma quebradeira de côco de babaçu, por exemplo, pode ser também extrativista, negra e quilombola. “Quando a gente tenta categorizar, pode estar diminuindo aquilo que é mais amplo e mais abrangente”. Costa informa que a comissão também vai capacitar funcionários do governo e lideranças para que os vários setores envolvidos com o assunto possam conhecer melhor os diversos grupos.

Maria de Jesus Ferreira Brinjelo, conhecida como dona Dijé, 54 anos, é uma dessas pessoas que resume a diversidade e a disposição de luta das populações tradicionais. Com cinco filhos e quatro netos, ela começou a quebrar côco de babaçu aos 16 anos, para ajudar a sustentar a família em uma pequena comunidade do município de São Luís Gonzaga (MA), a cerca de 280 quilômetros de São Luís. Além de extrativista e quebradeira de côco de babaçu, também se considera quilombola - uma “mistureba”. “Não adianta, para nós, que estamos nas comunidades, a terra só para nós, porque existem outras pessoas que dependem da terra. Queremos que tanto nós como as pessoas que estão nas periferias das grandes cidades tenham acesso aos babaçuais, independentemente de onde eles estão”, afirma Dona Dijé, que também é secretária-geral da Associação de Áreas de Assentamento do Estado do Maranhão (Assema) e integrante do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Côco de Babaçu (MIQCB).

Ela explica que a principal reivindicação do MIQCB é a aprovação de uma lei federal que proteja e valorize a prática do extrativismo. Apenas alguns poucos municípios maranhenses e tocantinenses já instituíram leis sobre o assunto. No total, segundo cálculos do MIQCB, existem hoje mais de 400 mil quebradeiras nos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Pará. Há nove anos, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende regulamentar o extrativismo do babaçu. Enquanto isso, mulheres como Dona Dijé continuam dependendo, em muitos casos, da boa vontade dos grandes fazendeiros proprietários das áreas onde crescem as palmeiras, os mesmos que também podem representar uma séria ameaça ao ecossistema da planta, responsável por um óleo que serve para temperar alimentos e é cobiçado também pela indústria de cosméticos. “[Os fazendeiros] derrubam, matam as palmeiras novas com veneno ou plantam um capim que acaba matando o babaçual”, conta Dona Dijé.

Afirmação de identidades

O Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais serviu também como espaço para a afirmação das identidades de comunidades que, até há algum tempo atrás, não eram reconhecidas como "população tradicional". É o caso, por exemplo, dos pomeranos, descendentes de tribos eslavas cujo território ficou dividido entre a Alemanha e a Polônia e que têm traços europeus marcantes, como a pele e os cabelos claros. Em 1856, os primeiros colonos chegaram à região serrana do Espírito Santo, fugindo do regime czarista e motivados pela onda de imigração estrangeira estimulada pelo governo do Império. Hoje, os integrantes da comunidade estão distribuídos principalmente por sete municípios do Espírito Santo, têm dialeto próprio (o pomerano) e, em geral, desenvolvem atividades ligadas à agricultura.

As chamadas comunidades religiosas de matriz africana também foram reconhecidas, pelo menos oficialmente, há pouco tempo. "Esses grupos são a primeira forma de organização política dos escravos trazidos da África. Daí surgiram vários quilombos, irmandades católicas e manifestações como congados e moçambiques", explica Ana Maria Sales Placidino, da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU), pertencente à nação Nagô Godô e moradora do Quilombo Terra Vermelha, de Cachoeira (BA), município da Região Metropolitana de Salvador.

Ana Maria conta que algumas comunidades criadas no século XVIII estão ativas até hoje. Geralmente localizadas na zona rural, esses agrupamentos representaram formas poderosas de resistência à escravidão, comprando a alforria de vários escravos, organizando formas alternativas de comércio e suprindo a subsistência de inúmeras pessoas. Também funcionavam, muitas vezes, como uma espécie de rede de assitência social, ao acolher crianças, adolescentes e idosos abandonados. Até hoje, em muitos lugares, oferecem creches e cursos profissionalizantes de culinária, música e artesanato tradicionais, por exemplo.

"Temos todo um patrimônio a proteger. Somos comunidades tradicionais em todos os sentidos, com diversas etnias, línguas próprias em cada uma dessas etnias, com atividades tradicionais, extrativismo, pesca, culinária", afirma Ana Maria. Ela conta ainda que a principal reivindicação das comunidades é a proteção e a preservação dos conhecimentos e das práticas tradicionais dos afro-descendentes. Para isso, seria necessário realizar inventários e elaborar publicações sobre o assunto. A representante da ACBANTU considera urgente a realização de um censo populacional dos vários grupos espalhados por todo o País, localizados sobretudo na Bahia, Minas Gerais e Maranhão. "Também queremos ter acesso às políticas públicas", defende. Apesar de ameaçadas pelo esquecimento da história oficial, as organizações dessa "nova" população tradicional continuam mostrando sua força ao participar de espaços políticos importantes. A ACBANTU, por exemplo, tem assento no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e vem atuando em vários fóruns governamentais de saúde e educação.

I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais 17 a 19 de Agosto de 2005

Sistematização das Demandas Prioritárias

.:Regularização Fundiária e garantia de acesso aos recursos naturais; .:Educação diferenciada, de acordo com as características próprias a cada um dos povos tradicionais; .:Reconhecimento, fortalecimento e formalização da cidadania (exemplo: documentação civil); .:Não criar mais UCs de proteção integral sobre territórios dos povos tradicionais; .:Resolução de conflitos decorrentes da criação de UCs de proteção integral sobre territórios de povos tradicionais; .:Dotação de infra-estrutura básica; .:Atenção diferenciada à saúde dos povos tradicionais, reconhecendo suas características próprias, valorizando suas práticas e saberes; .:Reconhecimento e fortalecimento de suas instituições e formas de organização social; .:Fomento e implementação de projetos de produção sustentável; .:Garantia de acesso às políticas públicas de inclusão social; .:Garantia de segurança às comunidades tradicionais e aos seus territórios; .:Evitar os grandes projetos com impactos diretos e/ou indiretos sobre territórios de povos tradicionais e, quando inevitáveis, garantir o controle e gestão social em todas as suas fases de implementação, minimizando seus impactos sociais e ambientais.

Organizações escolhidas para ter assento na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais

Quebradeiras de côco Titular: Movimento Interestadual das Quebradeiras de Côco de Babaçu (MIQCB) Suplente: Associação de Áreas de Assentamento do Maranhão (Assema)

Seringueiros Titular: Conselho Nacional de Seringueiros (CNS)

Coletadores Titular: Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)

Pescadores Titular: Movimento Nacional de Pescadores (Monape)

Sertanejos Titular: Associação de Mulheres Agricultoras Sindicalizadas (Amas)

Quilombolas Titular: Coordenação Nacional de Quilombos (Conaq)

Comunidades de Terreiro Titular: Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU) Suplente: Rede Kodya

Geraizeiros Titular: Rede Cerrado Suplente: Articulação Pacari

Caiçaras Titular: Rede Caiçara de Cultura Suplente: União dos Moradores da Juréia (UMJ)

Ciganos Titular: Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci) Suplente: Centro de Estudos e Discussão Romani (Cedro)

Fundos de Pasto Titular: Coordenção Estadual de Fundo de Pasto

Faxinais Titular: Rede Faxinais Suplente: Rede Ecovida

Povos Indígenas Titular: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) Suplente: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, MG e ES (APOINME)

Pantaneiros Titular: Fórum Mato-grossense pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) Suplente: CZ-5

Pomeranos Titular: Associação dos Moradores, Amigos e Proprietários dos Pontões de Pancas e Águas Branca (AMAPPPAB) Suplente: Associação Cultural Alemã do Espírito Santo (Acaes)

Comissão Nacional – Linha de Ação/Encaminhamentos:

.:Revisão do Decreto (27/12/2004) que cria a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais .:Encaminhamento das Demandas .:Formação de técnicos e lideranças .:Revisão dos marcos regulatórios (acesso “qualificado” das comunidades tradicionais às políticas públicas)

www.socioambiental.org

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