Mercosul em Crise

Antes da crise atual, o Mercosul já enfrentava dificuldades, entre os problemas principais para sua consolidação estavam a paridade entre o peso argentino e o dólar (o que com a desvalorização do Real em 1999 causou um grande desequilíbrio na balança comercial), e a insistência Argentina numa espécie de relação privilegiada com os EUA. A crise Argentina lhes mostrou que eles não podiam contar com os americanos como pensavam, desse modo, simultaneamente à desvalorização do peso em 2001, a “aliança” com os EUA também ruiu. A crise Argentina era suficiente por si só para justificar a diminuição acentuada no volume do comércio entre estes países, mas o Mercosul entrou em crise sob vários ângulos neste período. Esta crise afetou profundamente o orgulho argentino e os levou a um “fechamento” para a idéia de abertura de mercado de tipo liberal. Se sob Menem a Argentina foi um dos bastiões do neoliberalismo no mundo em desenvolvimento, hoje a idéia de abrir o mercado encontra profundas resistências, ainda no calor do sofrimento causado pela espetacular catástrofe causada pela adoção da política ortodoxa receitada pelo FMI e outras instituições internacionais. Neste contexto o presidente Néstor Kirchner, da Argentina tem encontrado eco em sua política de enfrentamento a estas instituições e também às multinacionais, como foi recentemente o caso da Shell, que se viu acuada por um boicote convocado pelo próprio presidente argentino contra seus produtos, sendo então forçada a reduzir preços.

Esta tática tem sido importante para recuperar a auto-estima do povo argentino, que além de maltratado por uma crise econômica de magnitudes calamitosas passou pela humilhação sem precedentes em sua história de ter sido incapaz de honrar seus compromissos financeiros assumidos e entrado em “default”. Kirchner, no entanto, tem feito uso desta estratégia com finalidades que dizem respeito a seus próprios interesses pessoais – eleitorais seria o termo mais correto.

Com a fragilidade econômica Argentina, as relações comerciais com o Brasil primeiro esfriaram, depois estremeceram. O Brasil também passou a ser visto no país vizinho como um “inimigo”, causador de males sem fim à economia local, pois na medida em que a desarticulada e menos competitiva economia Argentina ainda sofre os efeitos da escassez de recursos para financiamento, em função da impossibilidade de obter empréstimos no exterior, a concorrência com os produtos brasileiros é uma fonte adicional de preocupação para os produtores locais. É evidente a impossibilidade de se estabelecer uma concorrência direta entre as economias de Brasil e Argentina neste momento, e é urgente que se estabeleça uma política compensatória ou um mecanismo que corrija esta distorção, sob pena de se desarticular ainda mais os sofridos produtores argentinos.

O cerne da crise enfrentada pelo Mercosul está exatamente na dificuldade em se chegar a um consenso em relação a esta questão.

O governo brasileiro vem se comportando como um paladino do neoliberalismo em relação à Argentina, recusando-se sistematicamente a estabelecer tal mecanismo, insistindo na necessidade de se estabelecer a livre concorrência pura e simplesmente. Paradoxalmente, no entanto, a forma de proceder do governo Kirchner não tem colaborado muito para solucionar o impasse. O mesmo tom e linguajar adotado por Kirchner no embate com o FMI tem sido aplicado ao Brasil, até o momento sem obter resultados. A falta de diplomacia deste governo em relação ao Brasil é de chamar a atenção, dado o grau de proximidade atingido até o momento na relação entre os dois países em função do processo de integração regional, e a atitude insensível do Brasil também causa-nos estranheza. Deveríamos estar atentos às causas de tal comportamento.

Como Kirchner obteve bons dividendos no embate com o FMI e as multinacionais, aparentemente resolveu adotar a estratégia de também “falar grosso” com o Brasil, porém, a inabilidade com que esta estratégia tem sido conduzida, afastou os dois países da solução do problema. O endurecimento da posição argentina em relação ao Brasil visa muito mais a elevação da popularidade de Kirchner em seu próprio país do que a obtenção de um mecanismo compensatório no Mercosul. Esse efeito é potencializado pela exaltação dos ânimos daqueles que se sentiram prejudicados pela concorrência brasileira em inúmeros setores. Os fabricantes de calçados, por exemplo, promoveram várias demonstrações públicas de repúdio à concorrência brasileira.

Do lado de cá da fronteira, o governo brasileiro parece ter esquecido suas bandeiras de esquerda durante as negociações com seus vizinhos. O Mercosul sempre foi um projeto caro às esquerdas no continente, não é por outro motivo que somente partidos e movimentos sociais desta extração política mantiveram contatos sistemáticos através do tempo no período inicial de constituição deste projeto. A idéia de uma comunidade de nações irmanadas por um passado histórico e aspirações futuras comuns parece ter sido abandonado nestas discussões. Este fato chama a atenção na medida em que Kirchner e Lula definem-se como políticos de esquerda. A negociação atual no interior do bloco regional parece ter assumido outras feições, que não as originais.

As causas da atual crise do Mercosul estão diretamente ligadas à própria organização do processo de integração regional. O Mercosul foi constituído sem que se tenha construído um arcabouço institucional adequado à sua continuidade. Para muitos essa ausência de uma estrutura burocrática mais acabada foi uma das causas de seu sucesso inicial, mas no momento atual, esta é a causa de sua fraqueza.

O romantismo inicial e o bom relacionamento entre os presidentes – que eram os efetivos negociadores e impulsionadores do processo, seja no período Alfonsín-Sarney, Menem-Collor ou Menem-Cardoso, tendeu a favorecer a manutenção da integração mesmo em períodos adversos, em que haviam muitas controvérsias. A lista de exceções da TEC (Tarifa Externa Comum), que seria o coração do projeto de mercado comum sempre foi imensa, e nunca se chegou de fato a um acordo em relação a esta questão, mas isto não era um entreve que pudesse paralisar o bloco.

No momento atual, o tipo de diálogo estabelecido mesmo em alto nível diplomático sugere que o romantismo foi deixado de lado em função de interesses cada vez mais particularizados. Embora a classe política tenha sempre se mantido distante deste projeto, o empresariado sempre teve alguma influência no processo decisório, atuando através de canais diretos com os “decision makers”. O restante da sociedade somente teve acesso de maneira muito mais superficial, através de órgãos meramente consultivos, como o FCES (Fórum Consultivo Econômico e Social) ou da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul. É evidente que o conjunto da sociedade brasileira não tem nenhum interesse no enfraquecimento da economia argentina ou em sua desindustrialização, desse modo, a intransigência na concessão de um mecanismo compensatório serve apenas ao interesse de grupos com acesso privilegiado aos canais brasileiros de negociação e que não são condizentes com as expectativas da população nem com o perfil e a história do presidente brasileiro. Se Kirchner jamais procurou evidenciar esta contradição, podemos supor que não estava de fato interessado na resolução desta controvérsia, preferindo impor barreiras unilaterais sem esgotar de fato todos os canais de diálogo. A unilateralidade das decisões de Kirchner trouxe resultados diametralmente opostos no Brasil e na Argentina. Se em seu país a posição desafiadora pôde encontrar eco em função do cenário acima descrito, no Brasil, a população que sempre teve uma postura de “indiferença benevolente” em relação à integração regional passou pela primeira vez a manifestar sinais difusos de oposição.

Se o presidente argentino não explicita suas posições e simplesmente resolve tomar uma atitude unilateral de elevação de barreiras alfandegárias enquanto todos no Brasil acreditam, em função de sua pouca insistência, que tudo está bem, sua atitude será vista no mínimo como uma traição ao bloco e às “boas” intenções do nosso governo. A este imbróglio, soma-se o fato de que também na Argentina alguns setores econômicos possuem acesso privilegiado aos negociadores, transformando seus interesses no interesse nacional argentino, fazendo com que uma demanda setorial ganhe proporções indevidas.

Disso decorre que o estagio atual das negociações do Mercosul não reflete os interesses das nações, mas tão somente interesses particularistas de setores econômicos muito distintos dos dois países, ou dos presidentes. A falta de enraizamento institucional do Mercosul leva a que a atitude de poucos possa travar completamente um projeto que é de interesse do conjunto das populações envolvidas. Evidentemente há um déficit democrático no processo decisório deste bloco, que não era tão relevante anteriormente porque conforme vimos, ele não impedia o avanço, antes o contrário. Hoje, no entanto, a única saída para resolver o impasse é ampliar o espaço da discussão e o número de atores envolvidos. Além disso, o alcance da integração, que a rigor não precisaria se restringir apenas à área econômica, poderia permitir que o foco do debate seja ampliado. Não é novidade a idéia de que a solução dos problemas do Mercosul é mais Mercosul.

Rodrigo Alves Correia [email protected] Cientista Político, ex-professor das disciplinas de Introdução à Ciência Política e Teoria Política Contemporânea no curso de Relações Internacionais na UNESP Universidade Estadual de São Paulo, Campus de Marília. Pesquisador da temática de Integração Regional no Mercosul.

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Pravda.Ru Jornal
X