A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) envia carta ao ministro da saúde afirmando que o atraso no repasse dos recursos tem comprometido o atendimento contínuo das comunidades, a contratação de médicos e dentistas, a compra emergencial de medicamentos e até de combustível para o transporte das equipes médicas pela região.
Mordida de cobra é um acidente relativamente comum para os povos indígenas que vivem ao longo do Rio Negro, no noroeste do estado do Amazonas. A cada ano, cerca de 50 pessoas daquela região são picadas por serpentes, geralmente jararaca. Não é comum que o acidente leve à morte das 50 vítimas anuais, apenas uma costuma ser fatal. Costumava. Em 2005 o Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (Dsei-RN) já registra cinco óbitos de índios que, uma vez mordidos, não tiveram acesso em tempo à dose salvadora de soro anti-ofídico.
Mas a falta de soro nas aldeias e nos postos médicos é, de acordo com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), apenas um dos problemas decorrentes do colapso do sistema de saúde indígena da região, gerido por um convênio entre a própria Foirn e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde. O convênio segue o modelo estabelecido pela Funasa em 2004, que centralizou a gestão e deixou às entidades conveniadas o papel de administrar o quadro de funcionários dos distritos com a verba repassada por Brasília. Desde sua implantação, este novo modelo tem sido criticado por diversas entidades indígenas e especialistas em saúde pública.
Em carta endereçada esta semana ao ministro da saúde, Humberto Costa, os povos indígenas representados pela Foirn afirmam que o atraso no repasse dos recursos por parte da Funasa tem provocado uma série de dificuldades na gestão do distrito e no atendimento das 554 aldeias da região, onde vivem 23 mil pessoas de 22 povos indígenas. Leia aqui a carta na íntegra. A falta de dinheiro está comprometendo a contratação de médicos e dentistas, a compra emergencial de medicamentos, soros e até de combustível para o transporte das equipes médicas pela região, uma vasta área de 110 mil quilômetros quadrados. O atraso no repasse de dinheiro para os Dseis, vale lembrar, é um fato recorrente nos últimos anos na administração da Saúde Indígena pela Funasa.
As conseqüências são graves. Dois surtos de diarréia provocaram a morte de cinco crianças recém-nascidas este ano. A desnutrição crônica vitimou quatro crianças menores de quatro anos no mesmo período. Outras sete morreram após contrair pneumonia. Muitos casos poderiam ter sido tratados se nossa equipe estivesse aparelhada com insumos adequados e atendendo de forma contínua nas aldeias, desabafa Hernane Guimarães dos Santos, coordenador do Dsei-RN baseado em São Gabriel da Cachoeira (AM), principal cidade da região.
Há seis meses o Dsei-RN não recebe nenhum carregamento de medicamentos. Faltam antibióticos, antiflamatórios e antitérmicos. Até gazes e esparadrapos temos que pedir fiado nas farmácias, afirma Hernane. Os repasses da Funasa têm sido feitos de dois em dois meses, fazendo com que o distrito e seus funcionários vivam endividados com os comerciantes locais, tanto para realizar suas atividades profissionais como para manter suas famílias. E todos estão sendo pressionados pelos credores a pagar suas contas, diz Hernane.
Diante dessa situação, poucos profissionais aceitam trabalhar para o Dsei-RN. Das quatro vagas de médicos previstas no convênio, apenas uma está preenchida por um clínico-geral; dos nove postos para dentistas, somente quatro estão ocupados. De acordo com o coordenador do Dsei-RN, nem os agentes indígenas de saúde, lotados nas aldeias, podem atuar em prevenção e educação na área de saúde bucal: faltam-lhes escovas e pastas de dente.
Acidentes e multas
O sucateamento da saúde no Rio Negro atinge também os motores das voadeiras que transportam os médicos e enfermeiros pelos rios da região. No mês passado, ao voltar de uma aldeia no alto Uaupés, um afluente do rio Negro, uma equipe de saúde sofreu um acidente assustador. Ao passar por trecho de corredeira no rio, o motor do barco pifou e, com o descontrole da embarcação, os quatro navegantes caíram no rio. Todos sobreviveram, mas uma das enfermeiras ficou tão traumatizada que disse que nunca mais sobe o rio, conta Hernane.
O coordenador do Dsei-RN afirma que o atraso no repasse ocorre desde o ano passado. Por trás do problema, segundo Hernane, está o condicionamento do repasse mensal de recursos à prestação de contas do mês anterior, estabelecido pela nova política da Funasa para os Dseis. O problema é que o órgão em Brasília não dá conta de analisar as prestações à tempo de enviar o novo repasse, afirma Hernane dos Santos. A ausência do dinheiro federal implica no pagamento, para a Foirn, de multas relacionadas à encargos sociais dos mais de 270 funcionários do convênio, entre agentes indígenas de saúde, técnicos em enfermagem, enfermeiros, médicos e dentistas.
A Funasa responde
O diretor de saúde indígena da Funasa, Alexandre Padilha, garante que o pagamento da última parcela do convênio firmado em julho de 2004 com a Foirn está em dia. A parcela referente aos meses de junho e julho, no valor de R$ 2.5 milhões, estará disponível na segunda-feira 20 de junho, promete Padilha. Ele diz também que nesta data será quitado o convênio entre Funasa e Foirn, no valor total de R$ 9.6 milhões. A Foirn contesta. Dos 9 milhões orçados no atual contrato apenas 5 milhões foram repassados. A Funasa sequer desconfia da gravidade causada pelo atendimento descontínuo, reclama Domingos Barreto, presidente da Foirn.
Barreto diz que não há motivo para a demora no envio de verbas, pois o convênio nunca teria atrasado as prestações de contas ou apresentado gastos injustificados. A burocracia, somada aos intervalos entre os contratos de convênio, renovados anualmente, quando a entidade tem que seguir trabalhando com recursos próprios, e à impossibilidade de se fazer licitações em cidades pequenas como São Gabriel da Cachoeira, comprometeu nosso trabalho, explica Hernane dos Santos. No final do ano passado, os funcionários do Dsei-RN ficaram 45 dias sem atender à população nas aldeias. E prometem entrar em greve novamente nos próximos dias.
ISA Bruno Weis
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