Formação de professores(as) dos anos iniciais da escolarização: a civilização africana em foco

Título: Formação de professores(as) dos anos iniciais da escolarização: a civilização africana em foco.

Autora: Nilce da Silva (professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) e-mail: [email protected], coordenadora do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão: Estudos sobre Populações (I) migrantes no Brasil e no Mundo: o papel da instituição escolar. Site: www.projetoacolhendo.ubbi.com.br Título: Formação de professores(as) dos anos iniciais da escolarização: a civilização africana em foco.

Resumo: Este artigo apresenta alguns elementos que nos permitem discutir a formação dos professores brasileiros levando-se em consideração aspectos da civilização africana. O mesmo divide-se nas seguintes partes: 1- Omissões e explicitações no currículo da formação de professores dos anos iniciais da escolarização; 2- Aspectos da civilização africana; Mia Couto e Moçambique; 3- Considerações finais: algumas indicações. Na primeira parte deste trabalho, trataremos dos aspectos culturais, assim como, da concepção de cultura que tem sido, ao longo dos anos, utilizada nos cursos de formação de professores. Em seguida, apresentaremos alguns aspectos da civilização africana, de um modo geral, e destacaremos dois textos do escritor moçambicano, Mia Couto. Para tanto, discorremos, brevemente, sobre a história de Moçambique. Finalmente, apresentaremos algumas indicações referentes a diferentes autores africanos que podem ser um caminho no debate acerca da formação do professor dos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Palavras-chave: currículo – formação de professores (as) – civilização africana – Moçambique - Mia Couto.

Abstract: This article presents some elements to discuss the formation of the Brazilian teachers of primary school considering some aspects come from African civilization. It is divided in the following parts : 1- Omitting and explicit facts and ideas in the curriculum of teachers in primary school; 2- African cultural aspects, Mia Couto and Mozambique ; 3- Final considerations: some indications about African culture. In the first part, we will consider some African cultural aspects and the concept of culture a long the time, in the courses that preparing teachers for primary school. Later, we'll present some appearances from African civilization: history of Mozambique; Mia Couto’s texts. Finally, we'll present some indications concerning the different African authors that can promote the discussion about the formation of primary school teachers.

Key-words: curriculum – formation of teacher for primary schools – African Civilization – Mozambique - Mia Couto.

Introdução

1- Omissões e explicitações no currículo da formação de professores dos anos iniciais

A seguinte afirmação do poeta moçambicano Mia Couto, é um dos pilares deste texto, porque ela nos autoriza a falar do lugar que ocupamos na sociedade brasileira, a ser quem somos: sangue europeu nascido no Brasil, sangue de segunda categoria:

Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos e pretos. Eu era tido como um branco de segunda, porque nasci aqui (...). Mas o problema para mim, para fechar este trecho sobre a literatura, é que mesmo os pretos que estão afirmando-se como grandes nomes da nossa literatura são mulatos do ponto de vista cultural, são todos eles urbanos, já nasceram na língua portuguesa, é raro o que sabe falar uma língua que não seja o português. É assim que também me sinto. Não me sinto como um representante da fala branca, sinto que sou um mulato culturalmente (2004, p. 54 a 58).

Parafraseando Couto, dizemos: Somos filhos de europeus, pai português, mãe italiana. Não sofremos do racismo colonial quando estamos na (ex) colônia, porém, em contato com o europeu em seu continente, somos de segunda categoria. Não nos sentimos assim representantes da fala branca, culturalmente falando não somos brancos. Feitas estas considerações, entramos no cerne deste artigo e explicitamos a definição de cultura, em que nos baseamos, enquanto conjunto de práticas significantes para os homens e mulheres. Ou seja, cultura como forma de vida, de ser e de fazer com significados partilhados. E, como sabemos, devido à própria natureza burguesa da instituição escolar, o currículo tem sido matriz ideológica a serviço da prática da exclusão social, seja por meio da explicitação de determinadas versões do conhecimento (a escolhida pelos grupos dominantes ou colonizadores), seja por meio da omissão de outras (negros, indígenas, aborígines australianos etc). Sendo assim, este artigo pretende contribuir para a reflexão e composição do currículo no que diz respeito à formação de professores e professoras dos anos iniciais da escolarização. Tal reflexão constituir-se-á pela proposta da inserção das diferentes lutas travadas no âmbito político da sociedade brasileira como domínio do futuro professorado. O objetivo de tal providência pedagógica é combater a exclusão, já que possibilita o espaço e a voz de um grupo maior de pessoas. Na sociedade brasileira, repete-se a posição adotada por diferentes sociedades com relação aos negros e expressa por Munanga: “Na história da humanidade, os negros são os últimos a serem escravizados e colonizados. E todos, no continente como na diáspora, são vítimas do racismo branco” (1999, p. 56), talvez porque grande parte da população brasileira nega, desconhece e ou esconde o preconceito existente quando na frente dos europeus da Comunidade Européia. E por isso, na atual conjuntura, há um esforço dos negros e de seus descendentes na sociedade brasileira para provar aos brancos, de pele e de cultura, a existência de uma civilização negra. É com esta construção de significados que este artigo pretende contribuir. Para tanto há que se reconhecer que sendo a civilização africana basicamente composta por sociedades de tradição oral, é por meio da língua do colonizador que a mesma pôde fazer-se presente hoje, depois de séculos de colonização cruel e décadas de guerras civis sangrentas. E assim, fazemos um convite para o estudo da literatura dos países de língua portuguesa oficial como uma metodologia de ensino transdisciplinar no sentido de possibilitar a introdução aos estudos da civilização africana. Mesmo sabendo que a repartição do continente africano, em 1885, faz com que existam hoje Estados africanos em que coexistem, muitas vezes, não pacificamente, diferentes nações. Dentre diferentes países “artificiais” da África, as ex-colônias portuguesas (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique), independentes a partir de 1970, têm sido do nosso interesse como professoras e pesquisadoras. Estes países, assim como outras ex-colônias na África, de acordo com F. Fanon, citado por K. Munanga, foram tomados, depois da independência, por uma

burguesia nacional que toma o poder no fim do regime colonial é uma burguesia subdesenvolvida, de potência econômica quase nula..., não orientada à produção, à investigação, à construção e ao trabalho... Ela mergulhou com alma tranqüila na via horrível, antinacional de uma burguesia baixa, besta e cinicamente burguesa (...) Somas importantes são utilizadas em despesas de aparato, em carros, vilas... De modo que se criou uma burguesia de um tipo novo, de função pública, que Karl Marx não pôde prever. Para a maioria das elites africanas, a independência consistiu em tomar a posição dos brancos e gozar das vantagens exorbitantes até então concebidas aos coloniais. Carros luxuosos importados foram multiplicados por dez depois da independência. A corrupção já conhecida no meio colonial tomou proporções assustadoras em muitos países” (1993, Revista USP, p. 105).

Conseqüência desta situação, a situação do referido continente preocupa, alarma, sobretudo, também pelo uso do álcool, da prática da prostituição e da disseminação da AIDs. Do nosso ponto de vista, esta situação é mais um motivo que nos faz defender o ensino de aspectos das culturas e sociedades africanas na formação de professores dos anos iniciais da escolarização. As palavras de Faundez nos incentivam: “Se o homem é responsável por si mesmo e pela sociedade, deve educar-se para resolver os problemas da vida individual e social que são inerentes a sua existência” (1994, p. 51). Faz-se mister diminuir o etnocentrismo europeu e americano até agora presentes no currículo nacional, e abrir espaço para outros povos. Sendo assim, defendemos como papel do professor universitário no Brasil, seja de escolas públicas ou particulares, promover os estudos africanos do ponto de vista que ele melhor souber e que as diferentes técnicas de ensino sejam acionadas para tanto, como por exemplo: apresentação de diferentes culturas para seus alunos por meio de disciplinas de graduação de pós-graduação, cursos de extensão, mesas redondas, simpósios, debates etc. Neste sentido, não é a primeira vez que apresentamos como proposta para a conexão Brasil / África, uma metodologia de ensino que aborde esta relação, estabelecida no seu princípio por meio do tráfico de escravos, por meio da leitura e do estudo das Literaturas Africanas, inclusive para ressaltar a beleza destas populações que formam este continente em termos da riqueza cultural, da diversidade que nele se encontra. Ou seja, a proposta que apresentamos para o ensino nos primeiros anos da escolarização, inclusive de jovens e adultos, inicia-se por um momento em que se fala das raízes antes e fora da escravidão; da tradição, para que depois, a contemporaneidade seja debatida e re-significada. Ao adotarmos esta posição metodológica, a seguir apresentaremos alguns aspectos da civilização africana e dentre eles, iremos nos deter em uma pequena parte da produção literária de Mia Couto como exemplo de viabilidade de conhecimento necessário para compor o currículo em debate.

2- Aspectos da civilização africana

Conforme os estudiosos da civilização africana, dentre outros, Munanga, Bastide, Serrano, Bazebo, Gabus, Balandier, Willet, a história dos povos africanos é parecida com a dos demais povos do planeta: a busca da sobrevivência material, espiritual, artística, intelectual... porém, esta história não é conhecida e compreendida pelo pensamento chamado ocidental. Tal situação é resultado do etnocentrismo das ciências européias e americanas. Esta civilização é formada por complexos culturais muito antigos e, de modo introdutório, pode ser apresentada aos futuros professores, professores atuantes e seus alunos como uma civilização que tem valores arraigados na tradição; que em termos de arte produz inúmeras estátuas antropomórficas e desenhos de decoração (ziguezagues, linhas onduladas, espirais, dobras, lagartos, tartarugas etc, relacionadas á idéia de vitalidade e longevidade); que tem como temática artística a mulher, a fecundidade, a fertilidade; que cultua seus antepassados; que conhece as forças da natureza; que conhece a “força vital” (relação entre as forças humanas, sobrenaturais e do cosmos); que atribui e reconhece a autoridade do tio materno em relação aos filhos de sua irmã; que possui conduta descontraída e, ao mesmo tempo respeitosa, em relação aos avós; que é composta por inúmeros ritos de iniciação, mitos de origem com pares primordiais e ou duplas e antepassados da natureza com a presentificação dos mesmos por meio das artes; e suas divindades religiosas, cujos candomblés têm formas de culto muito próximas aos de culto tradicionais africanos. Neste artigo, conforme já anunciamos, dentre um leque de possibilidades, consideraremos o poeta moçambicano Mia Couto e sua obra. Mia nasceu em Moçambique, localizado no Sudeste da África, um dos países que compõe a comunidade lusófona, por isso, tem como língua oficial o “português”, apesar de que, nele, outras línguas africanas coexistem: ronga, shangaan, dentre outras. Sua capital é Maputo. Conta com uma população de quase dezenove milhões de pessoas e é uma das nações mais pobres do planeta. De 1505 a 1975, permaneceu sob o domínio de Portugal. Em 1962, o movimento nacionalista para a libertação de Moçambique do domínio português ganha impulso com a criação da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de linha marxista, sob a liderança de Eduardo Mondlane e depois de seu assassinato, em 1969, de Samora Machel. Neste período, a situação de guerrilha reinava no país, tal como se encontravam Angola, Guiné-Bissau e outras ex-colônias portuguesas. Tal instabilidade política contribuiu para a queda da ditadura em Portugal, em abril de 1974, na Revolução dos Cravos. Em 1975, com o governo de Samora, Moçambique ganha a independência. Diante destas mudanças, muitos (ex) colonos portugueses retornam a Portugal e deixam o país completamente destituído de mão-de-obra qualificada e de infra-estrutura básica. A Frelimo fracassa na tentativa de constituir um país verdadeiramente socialista e assim alimenta as ações da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), grupo anti-comunista da região. As secas aliadas à não estruturação do governo provocam a fome e a morte em grande escala na década de 80. Hoje, ainda, a situação não é estável, há minas terrestres por todas as partes, fome, tifo e cólera. Foi eleito em dezembro de 2004 o presidente Armando Guebuza ligado à Frelimo. Mia Couto, mais velho do que seu país independente – conforme ele mesmo diz - é um periodista e escritor de Moçambique, nascido em Beira. Iniciou seus estudos universitários em Medicina em Maputo, na Universidade Eduardo Mondlane – não concluindo esta graduação. Especializou-se em Biologia. Fez sua opção pela vida de escritor e sua obra é consagrada e traduzida em vários idiomas. Atualmente ele trabalha como professor universitário, dedica-se ao teatro e tem um grupo de estudos sobre impactos ambientais. Dentre sua maravilhosa obra, destacamos um conto - "Nas Águas do Tempo" - e uma fábula “do Macaco e do Peixe”, na certeza de que estes poderão motivar o leitor a ler outros trabalhos seus. O conto escolhido trata da relação existente entre um menino e o seu avô : Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado. - Mas vocês vão aonde? Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem. - Voltamos antes de um agorinha, respondia. Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver. Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava. - Sempre em favor da água, nunca esqueça! Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem. Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecia-mos perfeitos. De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por pinte, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano. - Você não vê lá, na margem? por trás do cacimbo? Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos. - Não é lá. É lááá. Não vê o pano branco, a dançar-se? Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra. Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira: - Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte... O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar. Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não-firme. - Nunca! Nunca faça isso! O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou: - Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades. Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça. - Cumprimenta também, você! Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu: - Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu? Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos. - Me entende? Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, bem o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada: - Fique aqui! E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões. Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando vislumbrar os brancos panos da outra margem.

Este “pequeno” conto pode ser utilizado por professores de alfabetização no sentido de discutir o gênero conto em si e como tentativa de introduzir, além das questões relativas à africanidade, apontadas acima, os seguintes temas: meio ambiente, as diferentes formas de escrita em língua portuguesa, a origem da vida e a morte, o sagrado, o proibido, a sabedoria dos mais velhos. Ou seja, percebe-se a profundidade que é enunciada em tão poucas palavras. Vejamos agora, outro texto: a fábula, escrita em poucas linhas também e que nos ensina sobre a água, sobre os rios. "Um macaco passeava-se à beira de um rio, quando viu um peixe dentro de água. Como não conhecia aquele animal, pensou que estava a afogar-se. Conseguiu apanhá-lo e ficou muito contente quando o viu aos pulos, preso nos seus dedos, achando que aqueles saltos eram sinais de uma grande alegria por ter sido salvo. Pouco depois, quando o peixe parou de se mexer e o macaco percebeu que estava morto, comentou - que pena eu não ter chegado mais cedo!" Do nosso ponto de vista, o estudo destas pequenas obras de Mia Couto, bem como o conhecimento introdutório de Moçambique, em suma, do continente africano, podem permitir diferentes falas em salas de aula e promover o debate de questões tão importantes e delicadas como “identidade negra”, ações afirmativas, preconceito, estigma, discriminação, desigualdade social, dependência internacional, pobreza, subdesenvolvimento, enfrentadas no cotidiano por toda a população brasileira. Ou seja, por meio de uma obra literária forte, bem escrita, abrem-se possibilidades para a discussão de questões relevantes para professores e alunos que sofrem forte processo de exclusão social e que, ao discuti-las, podem construir um conhecimento necessário para o enfrentamento da realidade brasileira em que estão inseridos.

Considerações finais: algumas indicações

Constatamos que passamos muitos anos na escola e estudamos muito pouco sobre a África: seus países, suas culturas, seus povos, suas lutas. Perto do que é a África, este artigo é do tamanho de um grão de areia. Mas se levarmos em consideração a importância da civilização africana quando tentamos compreender a situação atual do Brasil e do mundo, ele mostra-se como um grande passo. Com certeza, o professor dos anos iniciais da escolarização discutirá esta sugestão, assim como, o professor de História e Geografia, definirão se este pode ser material para enriquecer suas aulas, junto a alunos pequenos ou a alunos crescidos. Este artigo é apenas uma introdução aos estudos africanos, ao conhecimento do berço da humanidade ou ainda do "pulmão cultural" do nosso planeta. Em suma, sugerimos que o currículo dos cursos que formam professores comece a ter estudos sobre o continente africano; mosaico de diferentes etnias, linguagens, climas, culturas e ecossistemas que não se mantém estático devido a diferentes processos: migrações internas, emigrações, urbanização, descolonização etc. Finalmente, recomendamos ainda o trabalho em sala de aula por meio dos ditados populares africanos, que trazem em si os valores destas sociedades, e indicamos, como inicial, o conhecimento de outros nomes das literaturas africanas, tais como: Lilia Momplé, Agostinho Neto, Jorge Barbosa, Viriato da Cruz, Pedro Corsino, Pepetela, entre tantos outros.

Bibliografia consultada

CANES, A. e BARBOSA, A. F. (coords.) Ênfases e Omissões no Currículo. Campinas, Papirus, 2001.

FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Rio de Janeiro, Fator, 1983.

FAUNDEZ, A. A Expansão da Escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994.

MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos. São Paulo, Editora Ática, 1999 (Série Princípios).

____________ “África: trinta anos de processo de independência”. In Revista da USP, São Paulo, n. 1, junho/julho/agosto de 1993.

PEPETELA. (1983) As Aventuras de Ngunga.São Paulo, Ática, 1983.

Entrevista com Mia Couto por Marilene Felinto na Revista Thot n. 80 – abril/ 2004. Sites visitados www.vidaslusofonas.pt/pepetela/htm. www.projetoacolhendo.ubbi.com.br

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