Homenagem, discussão e vivacidade na evocação de Bento Gonçalves, em Lisboa!

Alguém sabia que ali bem na Rua do Arsenal, funcionou o fabuloso torno mecânico onde Bento Gonçalves desenvolveu o seu ofício, por todos admirado, inclusive pelo presidente do conselho de administração do próprio Arsenal na época?

Como é possível conceber que o mais habilitado torneiro mecânico, do parque industrial do Arsenal, daquele cujas aparas de aço davam para montar uma tubagem de calibre perfeito do comprimento da própria rua do Arsenal, desenvolvia ao mesmo tempo a função clandestina de secretário-geral do PCP nos anos 20 e 30 do século XX?

Foi Edmundo Pedro companheiro à época de partido de Bento Gonçalves que elogiou a fantástica performance profissional de Bento Gonçalves. E recordou a vida dos dois no campo da morte lenta no Tarrafal, até à morte de Bento, directamente testemunhada por Edmundo de uma dita biliosa, uma doença caracterizada segundo o próprio Edmundo como falência renal e anúria (entende-se por anúria o estado de ausência de emissão de urina).

O prodígio técnico de Bento Gonçalves, um operário versado no espanhol, francês e inglês, pode exemplificar-se no seu engenho para construir uma máquina de gelo no Tarrafal, sem nunca antes ter tido qualquer noção de como era concebido um compressor, ou da máquina de cortar e enrolar tabaco, uma pequena maravilha de esperteza mecânica, exibida por Edmundo para toda a assistência.

A faceta do operário que se tornou intelectual foi de resto acentuada por Mário Soares, outro dos homenageadores que fez questão de estar presente. Em conjunto com Carlos Brito, sublinharam o aparente paradoxo que para ambos constituiu o facto do PCP não ter secretário-geral entre 1942, o ano da morte de Bento Gonçalves, até à fuga de Peniche no início dos anos sessenta. Porquê esse enorme hiato? Esses quase 20 anos, coincidem com a época em que ambos se iniciaram nas lides do PCP. A razão por ambos adiantada foi a de que a marca de Bento Gonçalves foi tão esmagadora que a ideia de uma substituição se tornava insuportável para muitos camaradas da direcção. Por outro lado, poderá ter pesado nessa relutância em substituir o líder desaparecido, o facto de alguns, como o lendário José Gregório, o mais destacado animador da revolta do soviete da Marinha Grande em 1931, e membro do secretariado do PCP, considerar pouco adequado que um secretário-geral do PCP, o partido da classe operária, não fosse um operário.

Ninguém sequer considerou hipóteses mais questionadoras daquilo que o senso comum costuma reproduzir, como a possibilidade de se ter gerado uma inclinação para a desvalorização do papel de uma liderança centrada numa pessoa, um ponto de vista possível quando estamos a falar de um partido comunista. Onde se teoriza que o génio dos indivíduos é valorizado, ao ponto do trabalho ser encarado como encadeamento social, em que o lugar do principal não se consegue facilmente determinar. Ou então que entre os possíveis substitutos, poderia existir um certo empate de aspirações e de perfil que não permitia uma escolha sem fracturas. A razão evocada foi pois, fundamentalmente, a do peso do grande herói desaparecido.

Foi sublinhado, o fenómeno especial no início do século XX, de Bento Gonçalves surgir como o símbolo do operariado mais avançado do seu tempo. Habilitado técnica e intelectualmente para dominar a execução e a organização da produção, para determinar os contornos da sua evolução e portanto, como o agente capaz de operar a viragem que a sociedade e o mundo ambicionavam. Hoje, e isso não foi sequer abordado pela escassez de tempo, a classe operária tradicional fragmentou-se na construção de uma subjectividade transformadora, pois que em muitos casos, a mão de obra é facilmente descartável, o patronato impõe a organização da produção e ameaça todos os dias com a deslocalização e o despedimento. A subjectividade determinada nestes segmentos da classe operária é mais defensiva e menos capaz de assumir uma atitude de agente de transformação. Mas a constante revolução da produção que caracteriza o capitalismo gera outros segmentos onde florescem Bentos Gonçalves porque são os trabalhadores e não o patrão que dominam aí o processo de produção, a sua organização e estão habilitados intelectualmente a conquistar um mundo novo. No fundo esta análise entre subjectividades fracturadas, serve para colocar em cima da mesa que não basta ser operário para automaticamente se metamorfosear em revolucionário, uma verdade há muito conhecida. E que o fulcro do embate transformador não liberta energias iguais em todos os ramos da actividade produtiva. De acordo de resto com Marx, essa energia não está necessariamente nos segmentos mais empobrecidos e precarizados dos trabalhadores. Foi de resto sublinhado que o Arsenal era a mais avançada unidade industrial do seu tempo e que o conjunto dos seus trabalhadores era o destacamento mais evoluído da classe operária portuguesa. Nada mais natural portanto que o Arsenal se constituísse na célula mais activa do partido da classe operária, e que fosse dela que a reorganização de 29 e o relançamento da actividade do PCP nos anos seguintes se originasse. E nada mais natural que a crítica do anarquismo, do sectarismo, do aventureirismo, do putchismo e de todos os vícios pequeno-burgueses prevalecentes no movimento operário, tivesse nos operários do Arsenal o seu esteio. O Arsenal e os seus operários eram a frente do movimento revolucionário e de mudança na sociedade portuguesa de então. E isso não foi obra do acaso apenas, nem do génio das individualidades operárias que por lá pontificaram apenas, incluindo o nosso Bento Gonçalves. Aliás, esse génio é também, de alguma forma, o produto das circunstâncias singulares da indústria do Arsenal. Foi pois o resultado de um processo social onde indústria avançada tecnologicamente e operários habilitados geram a visão de um mundo novo para o qual valia a pena batalhar, valia a pena mobilizarem-se e mobilizar a luta de todos os trabalhadores e camadas médias do Portugal do seu tempo.

Foi muito discutida a noção de que nas últimas décadas, a memória e o exemplo do papel de Bento Gonçalves está muito pouco valorizado. Porquê esta relativa secundarização? Levantou-se o dedo acusador ao muito insuficiente papel do PCP na valorização de Bento Gonçalves, nomeadamente no ano de 2002, o centenário do seu nascimento. Foi de resto sublinhada a ausência de figuras destacadas da direcção actual do PCP no colóquio. Os militantes do PCP presentes defenderam-se e contra-atacaram para sublinhar que a figura de Bento é recordada amiudadas vezes e no centenário se realizou uma exposição dedicada na festa do Avante. Por outro lado, João Arsénio Nunes, sublinhou que o trabalho historicista da documentação do PCP está muito insuficiente porque os meios disponíveis são escassos. Uma outra camarada achou mesmo exagerado o dizer-se que há uma certa ocultação da figura de Bento Gonçalves. Mas Edmundo Pedro contra-atacou exemplificando com o célebre livro “A Defesa Acusa” onde se publicaram as célebres declarações de defesa dos presos comunistas nos tribunais fascistas e onde a defesa de Bento não está incluída - “um belo documento que deveria ser conhecido”, disse. A interrogação acerca dos supostos motivos do esquecimento relativo de Bento Gonçalves, foi colocada mas não cabalmente respondida. Uma explicação adiantada é um tanto do foro da análise psicológica e conta-se nos seguintes termos: Bento Gonçalves é insuficientemente recordado porque Álvaro Cunhal, o secretário-geral que se lhe seguiu, se sentiu inseguro no possível confronto histórico que alguém pudesse suscitar. E porquê essa hipotética insegurança? Responderam alguns dos presentes que Álvaro Cunhal sempre transportou às suas costas o fardo de não ser operário e que, portanto, a evocação do herói do Arsenal era vista como a reprodução recorrente do defeito. Foi ainda mencionada a hipótese de que o papel de Bento Gonçalves na reorganização de 40-42 foi muito importante, tanto quanto se percebe pelo seu texto seminal “As duas palavras”, escrito no Tarrafal, e pelo testemunho de Edmundo Pedro que estabeleceu com clareza que foram Gabriel Pedro, Vilarigues, Júlio Fogaça e outros, também presos no Tarrafal, que receberam as pormenorizadas instruções de Bento para a reorganização quando regressaram a Portugal após a sua libertação. A hipótese foi a de que Álvaro Cunhal talvez sentisse alguma competitividade com Bento Gonçalves quanto ao peso relativo dos dois nesse processo reorganizador. Uma possibilidade que os presentes acharam descabida, caso fosse verdadeira. É que ninguém lhe passa pela cabeça contestar o papel de Álvaro Cunhal no processo mas tão-só recentrar e recuperar o contributo de Bento Gonçalves. Outras hipóteses explicativas haverá para o relativo apagamento da memória, mas uma que vem ao de cima sempre é pensar-se que rediscutir o passado é discutir também o presente e o ambiente, hoje, é avesso a discutirem-se linhas de orientação, alianças, desvios pequeno-burgueses, erros, etc. João Arsénio Nunes foi certeiro quando disse que esse esquecimento atinge também as obras de Álvaro Cunhal, como a “A Revolução Portuguesa, o Passado e o Futuro” e pode adiantar-se o total esquecimento em que está o “O Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”. O que todos aparentemente concordaram é com a ideia de que o passado não se tem discutido ou discute-se muito insuficientemente e não se poderão empreender acções com futuro sem o conhecer e rediscutir.

Um momento especialmente tocante foi a leitura das palavras de Vasco Carvalho, o secretário-geral interino do PCP nos anos quarenta, e vítima do processo reorganizador. O Camarada Vasco deu o seu apadrinhamento à sessão com palavras simples e a sua ausência física decorre das limitações dos seus 95 anos. Mas Vasco Carvalho é um testemunho vivo dos enfrentamentos da reorganização, das dissensões no PCP e no fundo é o exemplo das limitações e problemas que afectam o movimento revolucionário em Portugal.

Foi igualmente emocionante discutir-se com Fernando Vicente, o engenheiro recordista da tortura do sono em Portugal, com 31 dias, dos quais resultou um porte exemplar para um revolucionário. Ele modestamente quis sublinhar que a polícia política descriminava classisiticamente os presos, encarniçando-se muito mais com o castigo aos operários e camponeses, afinal a origem social dos próprios torcionários, e comparativamente era mais branda com os oposicionistas filhos da burguesia. Fernando Vicente no fundo queria sublinhar a sua modéstia como herói das prisões, perante a grandeza de Bento Gonçalves. Aliás, Mário Soares subscreveu a ideia de uma discriminação classista na actuação da PIDE, como se comprova, disse, com o que ele próprio sofreu. Mário Soares admitiu que a sua passagem pelas prisões foi menos violenta do que as torturas infligidas a milhares de trabalhadores. Contudo, Raimundo Narciso, o super-operacional da luta armada contra o fascismo, na célebre A.R.A., contestou que fosse de alguma forma Fernando Vicente um exemplo de qualquer descriminação positiva pela PIDE pelo facto de ser engenheiro. Fernando Vicente, afirmou-se no colóquio, é talvez o preso vivo mais barbaramente torturado na PIDE e o ser engenheiro, afinal, de nada lhe valeu.

No plano da discussão política do legado de Bento Gonçalves, João Arsénio Nunes sublinhou um dado pouco valorizado do seu papel político. Arsénio Nunes afirmou que a acção de Bento foi profundamente marcada pela transposição da linha da Internacional para Portugal, facto que de resto foi abordado por Paulo Fidalgo quando se surprendeu com um certo estereótipo de avaliação revelado por Bento no “Palavras Necessárias” na crítica por exemplo à acção socialista no governo republicano de 1919 ou à acção de Carlos Rates, o primeiro secretário-geral do PCP, na sua aliança eleitoral com a Esquerda Democrática em 1924, de resto fracassada. Esse estereótipo poderia perfeitamente encaixar num certo cânone adoptado do jargão da Internacional que teve como preocupação maior a clonagem de partidos bolcheviques e, até ao seu VII congresso em 1935, alimentou muitas análises e opções pouco consentâneas com uma linha unitária, como a célebre linha de “classe contra classe”.

A ideia de Bento como “homem do comintern”, rótulo que lhe tinha sido colado pelos anarquistas do seu tempo, podia ser usado em sentido pejorativo, mas segundo Arsénio Nunes, esse papel de transportador e transferidor da linha do proletariado internacional para Portugal era verdadeiro.

Carlos Brito, em contraposição à ideia de Arsénio Nunes, de resto um estudioso do movimento operário muitíssimo autorizado, sublinhou os períodos em que o PCP esteve sem orientação internacional, e que a despeito dessa falta, Bento e a direcção não deixaram de desenvolver criativamente o seu trabalho mesmo num estatuto de “auto-gestão”.

As duas visões podem mesmo assim não se excluir pois que se pode ser o “homem do comintern”, mesmo quando o dito comintern não telefona ou não escreve a dizer a senha. De qualquer forma, a imagem de Bento como o “Internacional” é muito interessante quando o movimento operário hoje nem sequer se consegue entender para formar uma estrutura europeia supra-nacional. O exemplo a retirar da acção de Bento é a de que um relançamento da ideia comunista em Portugal só pode fazer-se com um regresso ao internacionalismo de sempre da ideia comunista.

Numa tarde de sábado bem ensolarada, esteve o auditório do museu República e Resistência à cunha para evocar Bento Gonçalves durante mais de 3h00. O enorme sucesso do colóquio deve-se à iniciativa de jovens estudantes de sociologia que se sentiram profundamente marcados pelo desvendar da prodigiosa vida e acção de Bento Gonçalves. Jovens que nos mostram afinal como, o futuro, está mesmo para acontecer.

Paulo Fidalgo

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