CPI das Privatizações, já!

Subavaliação, perdão de impostos, transferência de encargos trabalhistas para o Estado, empréstimos favorecidos e não pagos no BNDES, uso de depreciadas “moedas podres”, garantia de lucro, lobbies incluindo até o presidente da República, eis o resumo do que foi o projeto de privatizações, sem dúvida o maior escândalo da história brasileira. Transferiram-se do patrimônio público para grupos nacionais e estrangeiros com relações privilegiadas no governo, principalmente nos dois mandatos de FHC, cerca de US$ 300 bilhões, em valores atualizados.

Lula atirou no que viu e acertou no que não viu, quando afirmou que havia evidências de corrupção nas privatizações tucanas. Mas errou, e continua errando, quando se nega a apoiar uma investigação a fundo nessa sombria página de nossa vida republicana.

Há uma CPI em andamento (?) na Câmara de Deputados, que até hoje não recebeu nenhum apoio expresso do governo, que parece ter receio das revelações que eventualmente venham a surgir no curso de seus trabalhos. Dizem que Palocci e Henrique Meirelles são contra, para não assustar o mercado...

Bafafá já entrou nesse assunto, mas eu quero aprofundá-lo. O escândalo, pelas proporções que envolve, precisa ser apurado, não só em defesa do interesse público, como também para que não se consagre para sempre a convicção de que somos a pátria da ladroagem e da impunidade.

Vejamos alguns exemplos dessa montanha de negociatas, que assusta o mais frio dos observadores.

Comecemos pela Vale do Rio Doce, vendida em maio de 1996. Foi arrematada por R$ 3,2 bilhões, que valeriam hoje, com valores corrigidos com base na inflação do período, R$ 5,9 bilhões. Só em 2004, seu lucro chegou a quase R$ 6,5 bilhões, cobrindo com sobra o que pagaram seus compradores. Isso, sem falar nos ganhos que obteve nos exercícios anteriores, que alcançaram também somas elevadíssimas.

Estima-se que seu valor atual de mercado seja de US$ 40 bilhões, o que faz dela a maior empresa da América Latina e a terceira mineradora em termos mundiais. Este número representa 20 vezes o que custou e basta por si só para justificar uma CPI.

Outro caso é o da Eletropaulo, arrematada pelo equivalente a US$ 1,8 bilhão pelo grupo americano AES Corporation, através de uma filial no Brasil criada especialmente com esse objetivo. A fim de concretizar o negócio, recebeu um financiamento de US$ 880 milhões do BNDES, que, ao vencer, deixou de ser honrado. A única garantia oferecida eram as próprias ações da Eletropaulo, adquiridas com dinheiro do banco oficial. A questão está na Justiça, com a ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal de São Paulo contra toda a diretoria do BNDES da época.

A compra, por um grupo de que faz parte a mesma AES, de um terço das ações ordinárias da Cemig (representando apenas 16% do total do capital) constituiu outra bandalheira daquele triste período. Graças a um capcioso acordo de acionistas, firmado sem aprovação da Assembléia Legislativa, o consórcio comprador assumiu praticamente o controle da estatal mineira. A operação só foi abortada pela iniciativa corajosa do ex-governador Itamar Franco, que conseguiu na Justiça a sua anulação. Porém o BNDES, que forneceu os recursos para o negócio, não conseguiu recuperar o dinheiro emprestado. Apesar de sua inadimplência, o grupo da AES (de que fazem parte também o Banco Opportunity e a Souther Eletric) já recebeu R$ 282 milhões na forma de dividendos. Uma decisão recente da Justiça Federal do Rio suspendeu o pagamento de qualquer importância ao grupo, até que resolva sua pendência com o BNDES, que reclama a penhora das ações dadas como garantia do empréstimo.

Relatório encomendado ao Tribunal de Contas da União pela Comissão de Minas e Energia da Câmara revelou a existência de um esqueleto de R$ 25 bilhões nos armários do BNDES, por conta de empréstimos sem as devidas garantias concedidos para o leilão de 24 empresas de energia.

No caso da telefonia, a história se repete. A espanhola Telefónica arrematou a Telespe por R$ 3 bilhões, o que já era um excelente preço. Mas o negócio foi melhor ainda, porque a estatal tinha em caixa R$ 1 bilhão, dinheiro apropriado pelos arrematadores. A Telefónica é hoje campeã de reclamações pelos maus serviços prestados a seus clientes, embora as tarifas – como igualmente as de outras concessionárias privatizadas – tenham aumentado em até 1000%.

A privatização dos bancos estaduais significou mais um capítulo dessa crônica de favorecimentos que marcou as administrações tucanas, em nível federal e estadual. No momento de sua venda, esses estabelecimentos possuíam 31% dos depósitos à vista do País, 18,8% dos depósitos a prazo, 6 mil pontos de atendimento, que, ligados pela Rede Verde-Amarela, constituíam o maior sistema “on-line” da América Latina, além de ocuparem o primeiro lugar nos mercados de São Paulo, com o Banespa; do Rio, com o Banerj; de Minas, com o Bemge, e assim no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, na Bahia, etc. Tudo isso foi entregue de mão beijada aos bancos privados, contribuindo para aumentar a concentração bancária, que é das mais altas do mundo. Seis ou sete bancos dominam o mercado de crédito, com os spreads, juros e serviços também dos mais altos do mundo.

A privatização das ferrovias se fez sob o argumento de que se impunha ampliar a malha ferroviária e melhorar a qualidade dos serviços de transporte. Anos depois, a realidade é bem diferente. As empresas estão praticamente quebradas, com mais um esqueleto para o BNDES de alguns bilhões de reais, enquanto a malha foi diminuída em 4 mil quilômetros.

A lista não pára por aí. Todos os setores do processo de privatização estão marcados pelas mais graves irregularidades.

Por essa e outras razões, a CPI das privatizações se apresenta como alternativa irrecusável para os que ainda acreditam no Brasil. Mesmo que contra ela conspirem antigos e novos governantes.

*José Maria Rabelo, jornalista e escritor, [email protected]

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