Ex-juiz político contra João Sem Terra

 

            Ex-juiz político contra João Sem Terra

 

 

 

Caio Henrique Lopes Ramiro – Doutor em Direito pela Universidade Brasília (UnB), professor de Direito Administrativo e Direitos Humanos da Faculdade Maringá. Advogado.

Fernando Rodrigues de Almeida - Doutor, mestre e graduado em Direito, professor de Direito Constitucional e Filosofia Jurídica da Faculdade Maringá. Advogado.

Marcelo Augusto Pirateli - Doutor e Mestre em Educação pela UEM, graduado em História e Psicologia, professor de História do Direito da Faculdade Maringá e Fundamentos Históricos e Epistemológicos da Psicologia na Faculdade Adventista do Paraná.

 

Sérgio Moro dispensa apresentações. Ex-Juiz Federal, imagem primordial do insólito projeto da pioneira Think Tank estatal, denominada operação Lava Jato, que abandonou sua posição de parcial integrante do sistema judiciário para se tornar ministro chave do governo Bolsonaro, o qual abandona em uma situação bem desagradável, seguindo apadrinhado pelo então senador paranaense Álvaro Dias, tentando pleitear um cargo político pelo Estado de São Paulo - aparentando confundir-se, talvez por um anacronismo histórico das origens paulistas do norte pioneiro do Paraná - se vê impedido por não comprovar seu domicilio eleitoral na Vila de São Vicente, ficando obrigado a pleitear uma candidatura ao Senado paranaense, contra justamente aquele que o apadrinhou. Tais desventuras atrapalhadas parecem acompanhar o candidato que, apesar do nome que carrega em sua campanha, não é mais juiz, e como ele mesmo se intitula, nem sequer membro da “velha política” - termo curioso, uma vez que o partido ao qual se filia vem da união do antigo partido do atual presidente da república (Partido Social Liberal -PSL) e um dos mais antigos e tradicionais partidos da democracia recente do país, qual seja o Democratas (antigo PFL). 

Mas não nos deixemos enganar pela carcaça atordoada do candidato ao senado paranaense, pois por trás de sua aparente inocência política temos sinais preocupantes sobre estruturas basilares do estado de direito que vão além da sistemática partidária e o binômio direita-esquerda.  Antes de tudo é importante lembrar que Sergio Moro, o ex-juiz e ex-político, tem, por óbvio, formação na área do direito, inclusive ostentando o título de Doutor em Direito Pela Universidade Federal do Paraná, local que inclusive foi docente, pressupondo a nós um saber jurídico no mínimo sofisticado sobre as teorias do Estado e da Constituição, ou seja, não se trata de alguém que pode usar certos conceitos jurídicos por equívoco de inocência.

Observamos isso ao nos depararmos com uma de suas chamadas políticas mais recentes, veiculadas para o pleito de senador paranaense. O vídeo de campanha - disponível online pelo título “o sistema é uma porta giratória” -, inicia com a afirmativa de que o “o trabalho de juiz no Brasil pode ser bastante ingrato” - sorte dele que ele não é mais, ao contrário do que diz seu nome impresso no vídeo - sendo que o material prossegue fazendo uma analogia entre uma porta giratória e o sistema judiciário brasileiro. O que chama a atenção é o instrumento jurídico que a campanha usa para representar a crítica a esse sistema que é colocado da seguinte forma pela campanha do ex-juiz político: "a cada mandado de prisão um novo Habeas Corpus. Prende e soltam”, em seguida o narrador complementa que o sistema judiciário teria sido desenhado para ser dessa forma e afirma, em tom messiânico, que está na hora de alguém mudar o sistema, esse alguém, o candidato Moro, aparece no vídeo, finalmente, dizendo que com o nosso voto ele mudará esse sistema. É isso mesmo, para o ex-juiz o problema do sistema judiciário é o Habeas Corpus.

Obviamente temos antes outros detalhes interessantes no mesmo vídeo: primeiro a ideia do singular e no pessoal no uso da palavra “prende”, afinal quem prende é ele, essa figura solitária e messiânica, lutando por sua ideia de justiça, seguido pelo plural impessoal de “soltam”, sobre o outro incerto, sobre o jargão abstrato dos poderosos da velha política – ou para falar na linguagem do jurista conservador e autoritário Oliveira Vianna, que talvez seja autor conhecido do candidato ao Senado, a politicalha -, sobre a antipatia e antagonismo narrativo dos tribunais superiores - que o nome de Sérgio tanto ventilou para ser indicado antes de abandonar o barco de Bolsonaro. Depois a própria imagética do vídeo apresentando um “bandido” ao estilo irmãos metralha e uma mala de dinheiro sugerindo a corrupção sistêmica que ele tanto combateu, ou pelo menos sustenta narrativamente essa tentativa. Por fim o mito do salvador, ele no caso, o ex-juiz político justiceiro contra o sistema, esse que veio do sistema e quer voltar a ele, o de si para si, o paradoxo do demônio como criatura de deus. Mas, enfim, apesar de toda essa semiótica escalafobética, é uma propaganda política, e ainda que Moro insista em dizer que não é político, nada mais temos que elementos clássicos da propaganda política.

Parece desnecessário apontar a importância da liberdade que, assim como a vida, corresponde a um dos bens mais preciosos; não por menos, em diversos momentos foi objeto de profundas reflexões, destacadamente enquanto um valor tutelado pelo direito e, portanto, recebendo tratamento especial de diferentes ordenamentos jurídicos em distintas sociedades. Vale lembrar, que no período clássico do Direito Romano qualquer cidadão da Urbs poderia recorrer ao interdictum de libero homine exhibendo, isto é, todo cidadão poderia exigir a exibição pública de um homem livre que estivesse preso de forma ilegal; obviamente não se tratava de uma garantia contra o poder do “Estado”, no entanto era considerada um resguardo contra ações particulares, o que já demonstrava a necessidade de uma garantia efetiva da liberdade do civis romanus. Do mundo antigo, passando pelo medievo, fica evidente o esforço para se criar instrumentos contra prisões arbitrárias e outros desmandos e medidas protetivas para que houvesse a garantia do estabelecimento do devido processo legal. 

 

Não obstante, o que nos chama atenção aqui é o posto que o instrumento jurídico, o Habeas Corpus ocupa, o uso desse instrumento e o significado de significá-lo como o problema do sistema. Para uma abordagem constitucionalmente adequada, considerando os limites do presente texto, o instituto do Habeas  Corpus está inserido no rol dos direitos fundamentais do artigo 5º, especificamente no inciso LXVIII deste dispositivo da Constituição Federal. Contudo, a fim de bem angular a importância desse instituto jurídico - também nominado por Pontes de Miranda como remédio heroico -, suas origens remontam a documento do direito inglês, outorgado pelo rei João Sem Terra no ano de 1215, a famosa Magna Carta. No entendimento de alguns constitucionalistas, a natureza jurídica do documento da alta idade média inglesa pode ser compreendida de distintas maneiras, ou seja, como Lei (Concessão Real), como Contrato de Direito Privado, bem como, também, como Lei Constitucional, ou, ainda, como uma Declaração de Direitos. 

Em abordagem crítica dessa discussão, Carl Schmitt afirma em sua Teoria da Constituição (1928) que este documento jurídico, quando analisado em sentido histórico, deve ser entendido como uma estipulação (Stabilimentum) medieval entre o príncipe e os senhores feudais ingleses. Neste horizonte de perspectiva, no entender do jusfilósofo e constitucionalista alemão é um equívoco caracterizar a carta pelas vias apresentadas no parágrafo anterior, uma vez que sua natureza jurídica é a de um acordo sem nenhum sentido de direito político. Apesar da crítica de Schmitt, não há dissenso no que diz respeito ao reconhecimento da importância do Habeas Corpus, positivado no capítulo XXXIX da Magna Carta - outorgada pelo Rei João Sem Terra -, que dispõe que “ninguém será detido, preso ou despojado de seus bens, costumes ou liberdades, senão em virtude de julgamento por seus pares, de acordo com as leis do país”. Em que pese essa disposição normativa, as arbitrariedades contra o povo inglês continuaram – arbitrariedades se ligam ao desrespeito à lei e a comandos normativos, que podem ser cometidos por figuras messiânicas que teologicamente rompem a normalidade institucional para agir na exceção -, o que tornou necessário o surgimento do Petition of Rights em 1628 e, doravante, o Habeas Corpus Act de 1679, este último recebendo aprimoramentos em 1816, ocasião em que o remédio heroico passou a tutelar as pessoas detidas ou presas por motivos diferentes dos ofertados na acusação criminal, isto significa dizer por arbitrariedades, uma vez que a aplicação da lei escapava a moldura normativa.

A Ilha de Vera Cruz precisou suportar longos séculos em seu calvário colonial até que sua história pudesse colocar-se diante da necessidade de discutir a importância da garantia da liberdade tutelada pelo direito. A nossa primeira Carta Magna de 1824 ainda não previa expressamente o Habeas Corpus; mas, em que pese isso, inspirado no Decreto de 23 de maio de 1821 instituía garantias contra prisões, tendo em vista o direito à liberdade. Em seu Art. 179 assegurava a “inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império [...].  VIII. Ninguém poderá ser preso sem culpa formada”. De forma categórica, o Habeas Corpus foi introduzido em nosso ordenamento jurídico no Código de Processo Criminal de 1832, como instrumento de proteção do cidadão contra prisão ou constrangimento ilegal de sua liberdade e, com a Lei 2.033 de 1871, instituiu-se o Habeas Corpus preventivo (inclusive para estrangeiros). No entanto, tal instituto foi incorporado em um texto constitucional brasileiro em 1891, que, em seu Artigo 72, garantia a todo cidadão a proteção contra o iminente perigo da violência ou coação por abuso de poder.

Por este caminho já seria possível compreender a associação feita em vídeo de campanha do candidato ao senado pelo Paraná, haja vista que figuras com pendor autocrático costumam não lidar bem com limites legais e constitucionais e, menos ainda, com direitos e garantias fundamentais, reconhecidas em um Estado de Direito. Desse modo, arbitrariedades podem ser cometidas nas práticas do sistema judiciário, em especial, quando se tem uma formação jurídica que se rende a promessas vazias de status social, cargos e salários – se esquecendo de que servidor público tem um pressuposto ético que pode nos remontar a Cícero e o espírito republicano romano, bem como, na definição legal do artigo 3 da Lei nº 8112/90 cargo público é, antes de mais nada, conjunto de atribuições e responsabilidades -, oportunidade em que se privilegia o esquematismo reducionista das facilitações ou, para lembrar de Roberto Lyra Filho, quando se tem um Direito que se ensina errado. Logo, o atual candidato precisa melhor explicar qual sua proposta para “mudar o sistema”, pois como senador terá de observar o trâmite procedimental do processo legislativo constitucional; ou será que pretende desrespeitar a lei, como fez com a legislação processual penal quando operou como integrante da magistratura brasileira, vindo a ser reconhecia a sua parcialidade pelo Supremo Tribunal Federal, corte que tem a competência constitucional para funcionar como Guardião da Constituição?

Diante do que restou dito até aqui, ao que parece o apelido de sem terra do Rei João pode ter servido de motivação da ação política do ex-juiz político, uma vez que o epíteto do monarca inglês pode ter remetido o ex-juiz agora candidato a importante movimento social de luta pela reforma agrária no Brasil - que durante os anos de pandemia distribuiu toneladas de alimentos aos cidadãos e cidadãs brasileiras que se encontravam famintos e diante de pobreza extrema -, forma de organização social invariavelmente criminalizada pela classe e a casta da qual advém o candidato, antiga instituição política brasileira que projeta sua sombra escravista até nossos dias, a saber: a casa grande que humilha politicamente o povo pobre brasileiro. Logo, causa no mínimo estranheza, a postura de um jurista contra as garantias fundamentais, ainda mais em um país com centenas de milhares de detentos, e que em sua imensa maioria são de pessoas pretas e pardas, de mulheres-mães, potencializado pelo fato de que esse contingente significativo de encarcerados ainda não foram julgados. Isto posto, diante do “espetáculo” repulsivo que está sendo veiculado como promessa de campanha pelo referido candidato não nos permite o silêncio. Em verdade, urge a necessidade de apontar o óbvio: que o Habeas Corpus consiste em um instituto essencial. E mais: que por uma simples leitura e compreensão da Constituição, fica explícito o entendimento da “ex-excelência” enquanto meio pelo qual o cidadão brasileiro e a essa institucionalidade concretiza a função fundamental do Estado Democrático de Direito, qual seja: a proteção da liberdade pessoal. O ex-juiz, ex-ministro de Bolsonaro precisa se explicar e rever sua posição, caso contrário, a História não o absolverá.

Cplpn

 

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