Desde o Jânio, as coisas vinham aos trambolhões. Não havia como atender às demandas. Eram os tempos da guerra fria e havia setores que imaginavam um outro tipo de governo. Não tanto em termos de comunismo ou socialismo, mas de terceiro mundismo. Isso assustou o empresariado, as Forças Armadas, parte da classe média e a Igreja. Então começou uma espécie de ação contragolpe preventiva, porque é sempre assim. Eu imagino que o outro vai dar um golpe, corto antes.
Eram tempos de muita tensão. Discutia-se a reforma agrária, mas as propostas eram muito vagas. Debatia-se a reforma urbana, mas ninguém nunca especificava o que era a reforma urbana. Havia ainda uma alta dose de otimismo quanto a uma sociedade melhor, e uma alta dose de irrealismo quanto a como chegar nela.
O governo era também muito frágil. O Jango era vice e havia perdido o respeito, e um governante não pode perder o respeito. Nas discussões, líderes sindicais e estudantis punham o dedo em riste na cara dele - perguntem ao José Serra, para ver como era.
Tudo isso criou um clima de insustentabilidade e, ao mesmo tempo, o Congresso foi parando de tomar decisões. Isso é um indicador sempre seguro de que alguma coisa vai acontecer. O Wanderley Guilherme dos Santos tem um trabalho sobre isso. Mostra que o Congresso perdeu a capacidade de decidir porque o governo perdeu a capacidade de ter iniciativa no Congresso. Alguma coisa tinha de acontecer, de um jeito ou de outro.
No contexto da guerra fria, houve uma polarização. Havia o apoio efetivo dos setores conservadores, veio a missão chinesa a Niterói, então aproveitaram para dizer que havia uma conspiração. Continuavam as acusações de que Jango queria dar um golpe do tipo peronista, por uma república sindicalista. Nada disso tinha consistência real, mas política também se faz de imagens, símbolos, de representação. E houve também os desatinos. O Brizola tirou do Ministério da Fazenda o Carvalho Pinto, que representava bem ou mal os interesses constituídos de São Paulo, para colocar uma pessoa que não tinha representação alguma. Então veio o golpe.
A reconstrução da ordem leva muito tempo. Além disso, ganhava força a idéia de que, se afrouxassem, viria o comunismo. Os que se aboletam no poder não querem mais sair, começam a constituir interesses. Mesmo que o presidente ou o chefe do golpe tenha a melhor das intenções democráticas, o entourage pode não ter. Prorrogaram o mandato do Castello (Humberto de Alencar Castello Branco) e começaram as cassações. Aquela velha idéia golpista do expurgo: 'a corrupção está em toda parte, vamos limpar'. Isso pegava muito as Forças Armadas, que no passado, desde a República, se consideravam a encarnação do bem do povo. Essa idéia foi imediatamente aceita pela classe média e o empresariado começou a se movimentar. Vieram Roberto Campos e (Octávio Gouveia de) Bulhões e fizeram reformas, modernizaram. De 1967 em diante, tivemos uma grande movimentação, 1968 é o golpe no golpe, e aí começaram a endurecer para valer. Houve a guerrilha, mas ela não tinha força para abalar nada.
Os militares nunca fecharam totalmente, porque nunca tiveram uma ideologia. Eles queriam promover a pureza para democratizar. Os principais líderes políticos sempre pensaram assim, mesmo o Castello. Sempre com a idéia de que, depois da purificação, haveria uma boa democracia. Nunca compraram a ideologia fascista. Eram autoritários, nunca acreditaram muito em partidos. Não queriam mobilizar nada. Queriam limpar, criar instituições "puras", e aí então criar um Brasil formidável. Ilusão pura.
Nos anos 70 houve um boom econômico mundial, com repercussões aqui. São os anos do milagre. Então, enquanto todos nós estávamos fora do jogo, alguns presos, outros torturados, a imprensa censurada, o País estava prosperando, crescendo. Tivemos um momento de grande expansão, que só foi interrompido pela crise do petróleo, em 1975. A partir daí, começam as reações contra a violência: a atuação de d. Paulo (Evaristo Arns) contra a censura, a imprensa nanica, os jornais Opinião, Movimento e Pasquim.
Havia também uma postura pessoal do (Ernesto) Geisel e do Golbery (do Couto e Silva). Eles tinham o mesmo pensamento, sempre. Queriam fazer uma distensão lenta, gradual e segura. No caminho iam matando alguns, como revela o livro do Elio Gaspari sobre o Geisel. Começam em seguida as grandes greves: Osasco, São Bernardo. Descobrem então que o Brasil havia mudado tanto que havia surgido uma nova classe operária sem ligação com as lideranças políticas e sindicalistas do passado, dos tempos de Jango e Getúlio. Era outra: Lula, o sindicalismo autêntico, o sindicalismo de resultados. E o sistema econômico havia deixado de absorver toda essa gente. Em 1982 vieram a moratória e novas crises. Já não havia condições, por baixo, de dar satisfação às demandas que estavam desatadas.
Quando a imprensa fica mais livre, ela potencializa tudo isso, e você começa então um cerco ao regime. Vieram as Diretas-Já, a eleição de Tancredo (Neves) pelo Colégio Eleitoral, porque o regime, por dentro, também começou a ruir. Ruiu por fora e por dentro também. Na Espanha também foi assim. Deu no que deu: na democracia.
Quarenta anos depois, alguns atores são os mesmos,mas acho que mudaram. 0 problema é que em política você não pode dizer 'a pessoa é assim'. Ela é e deixa de ser, ela muda. Em termos de democracia, eles mudaram todos. A ideologia democrática ganhou. Não só por força da evolução de cada um, mas por força das circunstâncias, que não permitem mais algumas idéias. Os militares mudaram completamente, se profissionalizaram. Isso foi um ganho líquido. Da República até 1985, e mesmo na Constituinte, os militares ainda opinavam. De lá para cá, não mais. A sociedade civil cresceu muito. A Democracia, como valor, se enraizou. E como instituição, também. Os grupos são mais preparados para o debate, o debate se dá num contexto muito mais sofisticado do que antes, de todos os lados. Quando entrei no Senado, em 1983, o Senado não era capaz de debater com o governo. Não tinha preparo para isso. Hoje, o Senado e a Câmara têm assessor para qualquer assunto, convocam gente de toda a sociedade, discutem, o governo não consegue enrolar, nenhuma lei passa lá sem um crivo muito duro. O Brasil mudou muito, para muito melhor.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República In: O Estado de S. Paulo PSDB
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