Pronunciamento da Luciana Genro

A vitória do Partido dos Trabalhadores na eleição presidencial só foi possível diante da brutal crise do modelo neoliberal. A burguesia brasileira buscava um novo representante para implementar seus planos, e o PT e Lula, lançando a famosa Carta ao Povo Brasileiro que não foi dirigida ao povo, mas ao sistema financeiro internacional ofereceram sua credibilidade junto ao povo para dar continuidade a esse modelo. Assim, Lula obteve o apoio de parcela importante da burguesia, que teve a certeza de que nenhuma ruptura ocorreria no modelo que vinha sendo implementado por FHC.

O PT levou a sério a confiança da burguesia nacional e internacional, e promoveu acordos políticos, primeiro com o PL e PTB, e logo em seguida com o PMDB, que ao entrar no Governo não traz novidade; é apenas uma conseqüência lógica. Até o PP de Paulo Maluf tem ou gostaria de ter cargos no Governo. Já não estamos diante de um Governo de centro-esquerda, mas sim de centro-direita.

Com essa capitulação totalmente confirmada, até mesmo o projeto petista de desenvolvimento industrial burguês mais pesado começa a ficar comprometido. A proposta aprovada em dezembro de 2001 no último Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores - cuja execução era inviável, sem perspectiva de enfrentamento com o imperialismo e a classe dominante brasileira - já foi há muito tempo deixada de lado. Desde aquela época a cúpula do PT já anunciava que não faria esse enfrentamento.

A maioria parlamentar conquistada tem sido utilizada não para aprovar as mudanças que o povo brasileiro esperava e que foram historicamente prometidas pelo PT, mas para aprovar o que Fernando Henrique Cardoso não conseguiu. A base do Governo no Congresso chega a quase 80% e conta com 11 dos 15 partidos com representação parlamentar. Assim, como não poderia ser diferente diante destes aliados, as mudanças promovidas são reacionárias e representam retrocessos que atingem os direitos dos trabalhadores. O maior exemplo é a reforma da Previdência.

Não foi casualmente que essa foi a primeira reforma escolhida pelo Governo. Ela responde também a um fenômeno político. Resgatemos a brilhante contribuição do sociólogo Chico Oliveira, segundo o qual o PT é um irmão do PSDB, ambos interessados em utilizar os fundos públicos para a acumulação capitalista, transformando seus dirigentes em gestores desses fundos e enriquecendo com sua associação os capitais privados.

É público e notório o papel de quadros do PT nos fundos de pensão, enormemente beneficiados pela reforma previdenciária, poderosos instrumentos de poupança pública a serviço da acumulação capitalista, com seus pesados investimentos nas privatizações e nos títulos públicos. Assim, sedimenta-se socialmente a unidade da cúpula do PT com o sistema financeiro.

Não é de admirar, portanto, que o Brasil tenha tido despesa recorde em 2003. O primeiro ano do Governo Lula registrou o maior gasto com juros desde a implantação do Plano Real em 1994. O País é o quarto colocado no ranking mundial de gastos com juros, perdendo apenas para Jamaica, Turquia e Líbano. O superávit primário superou a meta estabelecida, e não cobre sequer a metade do total de juros que o Brasil pagou ao sistema financeiro internacional, quase 10% do nosso PIB. E 2 meses de juros equivalem a 1 ano de gastos com o Sistema Único de Saúde, que garante a saúde pública a milhões de brasileiros.

E os Estados têm sido vítimas dessa sangria. O Rio Grande do Sul, por exemplo, meu Estado, pagou à União R$ 100 milhões a mais do que recebeu em repasses federais, 18,6% da receita corrente líquida. Dos R$ 145 bilhões que o Brasil pagou de juros aos banqueiros internacionais, quase R$ 1,5 bilhão veio do Rio Grande do Sul, dinheiro que faz falta à saúde, à educação, às frentes de trabalho, à construção de casas populares, ao funcionalismo público. Os educadores do Estado estão em campanha salarial porque estão em situação de enorme miséria. Mas nosso País, com este Governo, prefere ser o campeão dos juros altos.

E quem ganha com essa lógica? O Bradesco, por exemplo, que lucrou R$ 2,3 bilhões em 2003, 14% a mais do que no ano passado, e seus ganhos derivam, particularmente, de aplicações em títulos públicos. É o dinheiro público que está engordando esse banco , cuja carteira de investimentos aumentou em 43%, diante da enorme lucratividade que os juros altos propiciam. Agora o Bradesco comprou o BEM - Banco do Estado do Maranhão - na primeira privatização do governo Lula. Mais um compromisso com o FMI que começa a ser cumprido: privatizar os bancos estaduais federalizados. Os próximos alvos são os bancos do Ceará, Piauí e Santa Catarina.

O Governo Lula é o aplicador fiel do receituário neoliberal reciclado, ou receituário social-liberal, do qual que fazem parte as políticas sociais focalizadas e assistencialistas. O resultado não é fome zero, mas sim PIB zero, o desemprego avançando 23% nos últimos meses, já atingindo 20% da população economicamente ativa. 500 mil desempregados a mais no país como resultado do primeiro ano do Governo Lula.

A renda das famílias desaba e a violência cresce. O Fome Zero, anunciado como grande prioridade do Governo Federal, distribui R$ 50,00 por mês a 1,9 milhão de famílias, quando 11 milhões estão abaixo da linha de pobreza. Mas o pior de tudo é que o gasto equivalente a 10 dias de juros da dívida equivale ao gasto em 1 ano do Programa Bolsa-Família.

Então, a grande prioridade do Governo Lula é o Bolsa-Família ou o Fome Zero? Não! É o pagamento de juros aos banqueiros e ao sistema financeiro internacional! Apenas migalhas sobram para os pobres. Essa é a focalização dos gastos sociais tão defendida pelo Ministério da Fazenda, que na prática já começa a ser implementada. Para pagar juros altos, esmolas aos mais miseráveis entre os miseráveis.

Os investimentos públicos são cada vez mais medíocres. Neste ano, o Orçamento votado por esta Casa previa R$ 12,3 bilhões para investimentos, mas nem isso será cumprido. O Governo já anunciou o corte de R$ 6 bilhões, 80% da verba de combate ao trabalho infantil. Isso é uma vergonha! É um escândalo o corte que o Governo faz no Orçamento público!

E a reforma agrária, bandeira de luta do MST e do PT? A respectiva Pasta está ocupada por um Ministro da esquerda petista. O que vimos foi o aumento no número de assassinatos de trabalhadores rurais, 60 mortes, número superior ao de 2002. Os líderes do movimento rurais ficaram meses encarcerados, como José Rainha e Diolinda. Nas palavras de Ariovaldo Umbelino de Oliveira, geógrafo integrante da equipe do Prof. Plínio de Arruda Sampaio, ao analisar as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária afirma que elas não são muito diferentes daquilo que o último Governo fez. São metas tímidas, e as terras de fato improdutivas serão a menor parte do PNRA, e que o Orçamento não tem recursos suficientes para que se elabore uma reforma aceitável para o País.

No plano internacional, o Governo atua sob a medida dos interesses comerciais do capital exportador brasileiro. Nesse marco, negocia a ALCA light e os tratados comerciais e políticos, quando a realidade da América Latina exige outra postura. Somos escravos do mercado financeiro, e só a unidade latino-americana pode fazer frente a essa realidade.

Produzimos enormes saldos comerciais à custa da fraqueza dos gastos internos, tudo para pagar a dívida. Com a remessa de lucros e o pagamento de dívida e juros, a América Latina enviou US$ 54,8 bilhões para o exterior, uma transferência líquida de US$ 29 bilhões. Enquanto isso, 44% da população do nosso continente padece na pobreza e 11% no desemprego. São negros, indígenas, mulheres, crianças e velhos, todos tratados como lixo pelos Governos que atuam dentro da lógica do Fundo Monetário Internacional.

Vale dizer que o Presidente Lula assumiu o comando do País tendo um Governo na fronteira norte do Brasil independente do imperialismo, responsável pela ruptura do isolamento completo de Cuba e promotor de uma ideologia bolivariana, progressiva, de integração e independência da América Latina: o Governo da Venezuela. Por que o Governo não poderia assumir essa mesma postura, ou pelo menos ir nessa direção?

O PT está atuando sob a medida dos interesses da burguesia. Sua política econômica não tem qualquer componente de ruptura com os interesses dos Estados Unidos e do imperialismo em geral. Pelo peso do capital financeiro na economia mundial e o lugar reservado a países como o Brasil, até mesmo uma industrialização importante está sendo comprometida.

Ocorre que a burguesia brasileira - e o Governo Lula é o seu representante político atual- está mais associada aos interesses do imperialismo, da estabilidade política do sistema mundial, dos capitais externos. Sua associação empresarial com as multinacionais, o tipo de inserção almejada no mercado mundial, como exportadora de commodities, e sobretudo o temor diante da mobilização de massas fazem a burguesia brasileira, embora com contradições e eventuais choques parciais, como ocorreu no Governo de Sarney, situar-se não apenas como inimiga das conquistas econômicas e sociais do povo trabalhador, mas de qualquer luta séria pela independência nacional e pela integração latino-americana. E o Governo Lula adota esse mesmo posicionamento.

Assim, em vez de um projeto de desenvolvimento industrial, mesmo nos moldes burgueses, o que temos visto é a economia a serviço dos rentistas do capital financeiro internacional. Embora o discurso e a ideologia petista, favoráveis ao desenvolvimento industrial e aos investimentos produtivos, não tenham sido de todo abandonados, na prática do ajuste, a teoria tem sido outra. Essa ainda tem sido a tensão existente no interior do Governo, ou seja, uma tensão entre o capital financeiro e o capital industrial.

Contudo, trata-se de uma contradição, nos moldes de uma unidade não apenas contra os trabalhadores, dado o interesse comum da burguesia na manutenção do arrocho salarial, especialmente dos exportadores, e a participação compartida das empresas na ciranda financeira. Nada a ver, portanto, com pressões por uma política de esquerda, antiimperialista e muito menos socialista, apesar de todas as contradições interburguesas.

Iludem-se então aqueles que acham que a situação do povo trabalhador pode melhorar nos próximos anos do Governo Lula. Nunca foi tão certo o slogan histórico do PT: só com luta a vida vai mudar. Só com luta, porém agora com luta contra o próprio PT, contra os grandes patrões, o latifúndio, os bancos e seu governo de plantão. Ou seja, no próximo período, caso os combates contra os planos de ajuste não sejam qualitativamente intensificados, seguiremos marcados pelo agravamento da crise social, pela violência urbana, pela miséria, pelo arrocho salarial e o sucateamento dos serviços públicos. A crise do desemprego foi transformada na mais grave crise estrutural. O capitalismo passou a ser um sistema incapaz de garantir o direito ao trabalho.

Na realidade o Governo Lula busca a governabilidade aliando-se às elites, às oligarquias, às classes dominantes, com a finalidade de implementar um modelo de arrocho salarial, de corte nos investimentos públicos, de privilégios ao sistema financeiro internacional, mantendo a situação de miséria da maioria do nosso povo. Mas esse povo luta. Vimos muitos conflitos ao longo deste ano e veremos ainda mais, combinados com as lutas salariais, com a organização dos operários nas fábricas e locais de trabalho, uma parcela determinante do movimento de massas que está longe de ter sofrido um enfraquecimento estrutural tão grande a ponto de não reagir aos ataques aos seus direitos e não lutar pela satisfação de suas necessidades.

Apesar das direções cooptadas, do temor do desemprego e da extensão territorial do País, que dificulta enormemente o processo nacional de mobilização, tenho certeza de que este ano será de muitos enfrentamentos, e o primeiro que se desenha é a reforma universitária. Amanhã faremos o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Universidade Pública e Gratuita, e não hesitaremos em combater propostas que cheguem a esta Casa com o objetivo de sucatear ainda mais as universidades públicas do nosso País, ou que visem dar continuidade ao processo de privatização branca já em curso nas universidades públicas, ao desmonte que já há muitos anos vem sendo promovido por orientação do Banco Mundial.

O Ministério da Educação promoveu, ainda sob o comando do Ministro Cristovam Buarque, um seminário em parceria com o Banco Mundial. Por isso, estamos muito preocupados com o resultado dessa reforma universitária. Será necessária uma árdua luta da comunidade universitária. De lá do Rio Grande do Norte vem o exemplo: estudantes, funcionários e professores, de modo unificado, têm lutado contra as altas taxas que a reitoria da UFRN tenta impor. Esse é um exemplo que terá de ser seguido por toda comunidade universitária do Brasil, que deve vir a Brasília, mobilizando-se nos seus Estados, para impedir que sigam os ataques contra as universidades públicas do nosso País.

Queremos, sim, uma reforma universitária, mas para democratizar o acesso à universidade, ampliar as vagas, abrir cursos noturnos e aumentar os investimentos públicos na Educação, que têm sido cada vez mais reduzidos, graças aos gastos cada vez maiores com o sistema financeiro internacional.

A experiência do nosso povo com o Governo também intensificará a erosão da base social do PT, por mais que o resultado eleitoral de 2004 seja, provavelmente, favorável ao partido do Presidente Lula. A ruptura de parte expressiva da base social petista, em particular o funcionalismo público, motorizado pela forte greve nacional dos servidores federais contra a reforma da Previdência, foi também acompanhada por setores intelectuais, por milhares de partidários das bandeiras históricas do partido, por parcelas da juventude. Ruptura essa que encontrou pouco respaldo na superestrutura partidária e parlamentar, pela evidente capitulação da maioria da chamada esquerda petista. Porém, os poucos que a expressaram, os chamados parlamentares radicais, ganharam enorme representatividade nacional, com destaque maior para a Senadora Heloísa Helena, convertida em menos de 1 ano na segunda principal referência da esquerda brasileira, atrás apenas do Presidente Lula, que aliás já disse que nunca foi de esquerda.

A razão disso é a identidade, percebida por parcelas do povo que acompanham a política, entre nossas batalhas e a história do PT. Essas parcelas sabem que o PT mudou. Mesmo nos setores do povo que acabaram aceitando as mudanças do partido, uma parte até estimulada pela mídia, considerando-as como sinal de amadurecimento, há o reconhecimento de que os chamados radicais são os que se mantiveram coerentes. Nosso grande desafio hoje é o início da construção do novo partido.

Após nossa expulsão do Partido dos Trabalhadores, que foi o coroamento desse processo de completo abandono do PT, em termos de sua identidade histórica, iniciamos a construção desse novo partido. Foram constituídos os primeiros movimentos, os primeiros debates programáticos, com a consolidação de sua coordenação nacional e das coordenações estaduais, a busca da legalidade, a inserção nas lutas e nos movimentos sociais. Esses são os grandes desafios que temos para este ano.

A reunião que realizamos no Rio de Janeiro, no dia 19 de janeiro, mostrou a nossa representatividade, com as possibilidades abertas para um trabalho de confluência e reagrupamento dos socialistas na esteira da falência do PT. Eleitoralmente, é certo que o PT pode seguir recebendo ainda apoio de massas; há, porém, um claro espaço à esquerda, e a necessidade social de que os trabalhadores tenham representação política, diante do completo abandono, pelo PT, da luta em prol das bandeiras históricas da classe trabalhadora.

A construção de uma referência alternativa de esquerda é, portanto, uma necessidade para que o projeto mesmo da Esquerda, não seja de um conjunto deslegitimado. Setores importantes da classe trabalhadora e importantes dirigentes sindicais, entre eles o ANDES, UNAFISCO, FENASPS, FASUBRA, o CPERS, inúmeros sindicatos no âmbito estadual, intelectuais e dirigentes políticos, como Carlos Nelson Coutinho, Milton Temer, Leandro Konder, além das correntes políticas que romperam com o PT ou que já estavam fora dele, e nós, os Parlamentares expulsos, já somos base ativa dessa construção.

Nosso partido será construído no seio da luta dos trabalhadores e do povo. Sabemos que esta éuma tarefa fundamental. É a única maneira de impedirmos que prevaleçam os interesses da grande burguesia e do capital financeiro internacional. Não falo nem em impedir o crescimento da Direita, porque ela hoje está no poder, junto ao Presidente Lula.

A única forma de termos condições de apontar um caminho que não seja o da desesperança e da frustração é a construção de um novo partido de esquerda socialista e democrático no Brasil. E vamos construí-lo defendendo um programa econômico alternativo, de ruptura com o imperialismo e com o sistema financeiro internacional, único caminho para resgatar os direitos do povo trabalhador expropriados pela elite dominante.

Por fim, eu poderia encerrar citando uma frase de algum revolucionário socialista com quem eu teria uma grande identidade. Mas opto por citar um moderado, moderadíssimo, o Sr. Rubens Ricupero, que agora não é mais Ministro e portanto já não esconde mais o que é ruim, e disse ao jornal Folha de S. Paulo, na semana passada: "Não se sai do dilema com a radicalização das políticas que nos reduziram ao cativeiro. Nos tempos de escravidão, o escravo de ganho conseguia às vezes pôr de lado alguma coisa para comprar a liberdade ou era alforriado no testamento do amo. Como a última hipótese não se coaduna com os impiedosos amos de hoje, só nos resta, como escravos de aluguel, conquistar a alforria com ações decisivas de ruptura do estado servil".

Era o que tinha a dizer. Obrigada.

Luciana Genro, Deputada Federal, RS

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