DEBATE SOBRE PRESCRIÇÃO DE CANNABIS E OS FANTASMAS DO PP

O Partido Popular realizou hoje uma audição pública a propósito da prescrição médica da cannabis para fins paliativos, tendo convidado Fernando Negrão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência, e Manuel Pinto Coelho, o médico que comparava os toxicodependentes aos terroristas talibãs e que afirma que “a redução de danos é um cavalo de Tróia para preparar uma posterior legalização do consumo.”

A escolha dos oradores não é mera coincidência. Manuel Pinto Coelho é a cabeça de cartaz da política mais conservadora de combate à toxicodependência, tendo conseguido a proeza de suscitar um abaixo-assinado subscrito por 80 por cento dos funcionários do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência (SPTT) contestando a sua nomeação para a administração deste organismo.

A má fé de Manuel Pinto Coelho é evidente quando, em artigo assinado no Diário de Notícias de 24 de Janeiro, diz que o projecto da prescrição médica de cannabis para fins paliativos ao pretender dar “ cannabis em crude em vez do THC puro aqueles doentes, será o mesmo que dar pão com bolor em vez de penicilina a um doente que necessite de tomar um antibiótico!”

Como Manuel Pinto Coelho sabe, ou deveria saber antes de falar, o único projecto em discussão – o do Bloco – não indica nenhuma forma de prescrição da cannabis ou dos seus agentes activos, deixando essa prerrogativa ao cuidado de quem sabe: os médicos. E, mesmo assim, sob cuidadoso escrutínio e sob a supervisão do Ministério da Saúde.

Que o PP se associe a figuras como as de Manuel Pinto Coelho num questão de saúde pública e qualidade de vida dos pacientes, ora aí está a triste sina de um governo dependente de homens de negócios para tomar qualquer decisão.

O BLOCO PROPÕE

1. A prescrição médica da cannabis, e seus princípios activos, aplica-se a todos aqueles que sofrem de doença crónica grave ou doença terminal e que já tentaram, ou pelo menos consideraram, todos os tratamentos convencionais para a respectiva sintomatologia, e através de prescrição e acompanhamento médico, comprovem necessitar deste método terapêutico para minorar os sintomas clínicos previstos no presente diploma.

2. A fundamentação médica da prescrição terá que indicar que o paciente está consciente dos possíveis efeitos secundários do tratamento. A forma de prescrição (oral, inalação, sub-lingual, etc) fica ao entendimento do médico.

3. A utilização terapêutica da cannabis encontra-se limitada às seguintes patologias e sintomas:

a) doença terminal;

b) dores crónicas e graves, náuseas graves, caquexia, anorexia, sub-nutrição e perda de peso, em caso de Cancro, Sida ou infecção com HIV;

c) dores musculares crónicas e espasmos, dores crónicas e graves em caso de Esclerose múltipla, lesões ou doença da medula espinal;

e) acessos de Epilepsia;

f) dores crónicas e graves em caso de formas extremas de artrite.

4. É da competência do INFARMED, em conformidade com os avanços na pesquisa científica realizada sobre as capacidades terapêuticas da cannabis, actualizar o leque de possibilidades de utilização previsto no ponto anterior.

5. O detentor de uma autorização médica para recorrer à utilização medicinal de cannabis, ou seus princípios activos, para fins terapêuticos está autorizado a possuir, de acordo com os propósitos terapêuticos invocados, cannabis ou os seus princípios activos.

6. O Ministério da Saúde deverá estimular, apoiar e suportar financeiramente a realização de estudos científicos sobre as potencialidades terapêuticas da cannabis, e seus princípios activos, realizados por Laboratórios Clínicos, Laboratórios Associados ou Unidades de Investigação Científica do Ensino Superior nacionais que o solicitem.

7 – O INFARMED deverá, de uma forma seleccionada e sob a sua supervisão, emitir licenças limitadas de produção às entidades referidas no ponto anterior que assim o solicitem.

A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Neste momento, embora com algumas diferenças de metodologia, o uso medicinal da cannabis já se encontra definido e regulamentado em vários países.

EUA:

A 17 de Março de 1999 o Instituto de Medicina dos Estados Unidos apresentou um relatório declarando que a cannabis tem efeitos benéficos para os doentes em estado terminal, em conclusão de um estudo pedido pelo Office of National Drug Control Policy da Casa Branca. Em seis Estados dos EUA, o uso medicinal de marijuana é autorizado por decisão de referendos e, recentemente, a Food and Drug Administration aprovou a prescrição de dronabinol, um dos derivados da cannabis, aos doentes infectados com HIV.

Canadá:

Depois do Supremo Tribunal de Ontário, em 30 de Agosto de 2000, ter decidido que o governo devia clarificar as regras sobre drogas, permitindo assim o seu uso terapêutico, o Governo do Canadá autorizou a utilização de medicinal da marijuana para, por exemplo, controlar a epilepsia. Em Setembro de 2003, 642 pacientes encontravam-se autorizados a possuir marijuana para fins medicinais, 500 das quais tinham uma autorização para a produção da planta para fins individuais. Também no Canadá decorre um estudo em comunidades de pessoas infectadas por HIV. Os últimos dados, relativos a Janeiro, indicam que 710 pacientes são abrangidos por este programa, 608 dos quais estão autorizados a possuir folhas de cannabis segundo prescrição médica. Também em Janeiro, existiam 532 canadianos autorizados a cultivar/produzir cannabis para fins médicos. (Dados disponíveis no site do Office Cannabis Medical Access: http://www.hc-sc.gc.ca/hecs-sesc/ocma/whatsnew.htm )

Holanda:

Na Holanda, desde o dia 1 de Setembro de 2003, o Governo decidiu autorizar a venda de cannabis, mediante prescrição médica, nas farmácias. Através de um instituto especializado, a Oficina para o Haxixe Medicinal, o Estado controla o processo de produção e distribuição, assim garantindo a qualidade do produto.

Reino Unido:

Em Novembro de 1998, a Câmara dos Lordes do Reino Unido publicou um relatório defendendo a utilização medicinal da cannabis[1]. Depois de consultar vários especialistas, e analisados os estudos existentes sobre a utilização terapêutica desta substância para tratamento de dores crónicas e terminais, o Comité da Ciência e Tecnologia da Câmara dos Lordes recomendou a realização de testes clínicos com “carácter de urgência”, requisitando a reclassificação legislativa necessária para permitir a prescrição médica da cannabis e cannabinóides – por outras vias que não a inalação.

Na sequência desse documento, a 11 de Julho de 1998, o Governo do Reino Unido autorizou uma empresa a realizar testes científicos sobre as possibilidades medicinais da cannabis, tendo em vista a produção de um novo produto farmacêutico. A companhia em questão, a GW Pharmaceuticals Plc (http://www.gwpharm.co.uk), tem feito notar que existem fortes indícios sobre os efeitos benéficos da cannabis num conjunto significativo de sintomas e solicitou, em Março de 2003, autorização para comercializar um novo medicamento, Sativex, uma extracção medicinal da planta de cannabis contendo como principais componentes tetrahydrocannabinol (THC) e cannabidiol (CBD).

Este pedido, que está à espera de uma resposta das autoridades sanitárias britânicas, foi entregue depois de concluídos positivamente todos os três estágios dos estudos clínicos, nomeadamente os testes comparativos com outros componentes activos actualmente utilizados, os quais incidiram sobre 350 pacientes com esclerose múltipla e dores neuropáticas. Os resultados indicam avanços significativos no combate a alguns dos principais sintomas, como é o caso mais evidente dos distúrbios de sono e espasmos.

ARTIGOS CIENTÍFICOS E ESTUDOS INTERNACIONAIS:

1. Na edição de Maio de 2003 da revista The Lancet Neurology, David Baker e outros autores apresentam uma visão global da biologia da cannabis e cannabinóides, bem como dos estudos clínicos sobre o futuro da utilização terapêutica da cannabis: “Apesar do futuro imediato poder depender da utilização medicinal da planta, assim que entendermos melhor a biologia das desordens associadas, o futuro para a sua utilização terapêutica deverá repousar seguramente em produtos farmacêuticos, seja como simples agentes ou em combinações terapêuticas com outros agentes. Já existem actualmente indicações que cannabinóides podem ser usados numa sinergia de combinações com opiáceos e na diminuição dos sintomas de dor.[2]Graças a essas combinações, poder-se-á reduzir as dosagens, com a vantagem de também assim se reduzir os efeitos secundários”.

2. O Capítulo VII do Relatório do Senado Canadiano ”Cannabis: Our Position For A Canadian Public Policy” é peremptório ao afirmar que os efeitos a longo prazo do consumo da cannabis, mesmo que efectuado numa base regular, são limitados e que, os efeitos mais sérios, como o cancro dos pulmões, estão ainda por demonstrar claramente. Da mesma forma, convém recordar que os possíveis efeitos nas funções cognitivas predominam estatisticamente em pessoas já, por si, atreitas a essas disfunções, nomeadamente pelo início do consumo desde muito novos ou pela existência de predisposições psicóticas.

3. “Uma das principais vantagens da cannabis como medicamento é a sua notável segurança. Ela tem pouquíssimas consequências nas principais funções fisiológicas. Não se conhece nenhum caso de overdose fatal; em termos de experimentação animal a ratio de morte por dose efectiva está estimada em 1 para 40.000. Se quisermos comparar: o ratio é entre 3 e 50 para 1 no caso do secobarbitol e entre 4 e 10 para 1 no caso do álcool. A cannabis causa muito menos dependência e é muito menos dada a abusos que muitas drogas utilizadas actualmente como relaxantes musculares, hipnóticos e analgésicos. A principal e legítima preocupação é o efeito do fumo nos pulmões. O fumo da cannabis contém ainda mais alcatrão e outras matérias particulares que o fumo do tabaco. Mas a quantidade fumada é muito inferior, especialmente na utilização médica, e logo que a cannabis seja abertamente reconhecida como medicamento, poderão ser encontradas soluções. Os cachimbos de água são uma resposta parcial; em última análise poderia ser desenvolvida tecnologia para a inalação de vapores de cannabinóides. Ainda que se continuasse a fumar, a possibilidade legal de utilização facilitaria a tomada de precauções contra os fungos e outros agentes patogénicos. Actualmente, o principal perigo da utilização médica da cannabis é a sua ilegalidade, a qual impõe demasiada ansiedade e despesas a pessoas que sofrem, obrigando-as a negociar com traficantes de drogas, e expõe-as à ameaça de serem perseguidas criminalmente”.

Artigo Publicado no Journal of the American Medical Association, Junho de 1995, Volume 273, N.º 23 1875

Lester Grinspoon, MD Professor Emérito de psiquiatria na Harvard Medical SchoolJames B.

Bakalar, JD, Editor da Harvard Mental Health Letter e Professor de Direito no Departamento de Psiquiatria da Harvard Medical School.

INQUÉRITO REALIZADO PELO JORNAL PÚBLICO, 21 SETEMBRO DE 2003

1 - Concorda com a utilização da "cannabis" para fins terapêuticos?

2 - Acha que Portugal deveria autorizar a aquisição de "cannabis" mediante receita médica

Eduardo Maia Costa

Procurador-geral adjunto

1 - Concordo. Se tem fins terapêuticos, se é um remédio, não vejo qual é o problema. Isto é uma questão diferente e mais simples do que a do consumo recreativo.

2 - Sim, se se prova que tem efeitos terapêuticos e que não é nociva, a indústria farmacêutica deve desenvolver técnicas e trabalhar nesse sentido.

João Goulão

Médico

1 - Concordo. Eu acho que todos os meios de minorar determinado tipo de ferimentos são lícitos e não tenho nada contra a "cannabis", desde que comprovadas as suas propriedades, como é o caso do seu efeito antiemético.

2 - Acho que sim. O problema é que este tipo de substâncias, por estarem incluídas em listas que as classificam de posse e consumo ilícito, têm circuitos muito difíceis de controlar. Mas, em princípio, e provada a eficácia terapêutica dos compostos da "cannabis", estaria favorável à autorização da comercialização para esses fins.

Alexandre Quintanilha

Biofísico

1 - Obviamente que sim. Já está a ser utilizada em muitos sítios e parece que está a ter bons resultados em relação a pacientes em estados graves, sendo o químico que faz parte da "cannabis" o único que lhes dá algum alívio.

2 - Parece-me absolutamente normal que isso aconteça. O que eu acho extraordinário, nesta discussão toda, é que toda a gente sabe muito bem quais são as graves consequências do tabaco e do álcool e não se conhecem as consequências graves da "cannabis", sendo que, até hoje, uma grande parte dos estudos mostra que a "cannabis" não conduz à utilização de outras drogas mais "pesadas". Por isso, não é lógico que nós aceitemos, sem receita médica, o consumo de álcool e de tabaco e que precisemos de receita médica para a "cannabis". Mas também percebo que há aspectos culturais complicados e, portanto, vamos ter que avançar lentamente.

Júlio Machado Vaz

Psiquiatra

1 - Concordo em absoluto.

2 - Acho que sim. Se as vantagens clínicas são fundamentadas em estudos

credíveis, parece-me errado que alguém estenda a tal utilização do produto argumentos esgrimidos - com ou sem razão, mas legitimamente! - na discussão sobre outros tipos de consumo.

João Menezes Ferreira

Presidente da Associação Portuguesa Antiproibicionista

1 - Sim. Os efeitos terapêuticos da "cannabis" são, neste momento, óbvios. A história dos psicotrópicos ou estupefacientes é uma história que começa por ser médica. Portanto, acho bem.

2 - Sim. Lembro que, na estratégia daqueles que lutaram pela alteração das leis da droga em Portugal, não se quis particularizar a "cannabis" nem esquecer a essencial intervenção médica na prescrição da "cannabis".

Luís Fernandes

Psicólogo

1 - Concordo em absoluto. Estão demonstrados os efeitos terapêuticos da "cannabis" em vários sofrimentos e a experimentação clínica com a "cannabis" foi interrompida apenas devido a razões morais e não a razões científicas. Isto é, no mínimo, lamentável.

2 - Tenho dúvidas de que a receita médica seja a melhor forma de tornar a "cannabis" acessível do ponto de vista terapêutico. Eu resisto a entregar nas mãos do monopólio da medicina convencional todo o controlo do sofrimento humano - em determinadas situações, sim, mas não em todas, porque ele já demonstrou muitos efeitos perversos. Há formas de autocuidado. As pessoas têm conhecimento sobre as formas de atacar o sofrimento, têm todo o campo das plantas medicinais e da medicina alternativa, e suponho que também se poderia utilizar "cannabis" como forma de autocuidado. Contudo, a receita médica poderá ser uma das vias, não me repugnaria nada.

Lourenço Martins

Juiz

1 - Se a "cannabis" tem algumas propriedades terapêuticas, parece não haver nenhum obstáculo de ela poder vir a ser utilizada. As dúvidas que se levantam, e são os médicos que as colocam, são se, de facto, a "cannabis" tem virtualidades terapêuticas. Se há médicos que entendem que sim, é uma posição de natureza médica e deontológica, e nós, os juristas, nada temos a opor.

2 - Não me pronuncio sobre isso. Acho que é uma questão médica. Como jurista, aquilo que vejo no panorama internacional é que há ainda muito mais dúvidas do que certezas.

Bloco de Esquerda

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