Os outros cristos

A vida de um provável agitador social, que teria vivido na Palestina dominada pelos romanos, Jesus Cristo, tem a sua versão oficial contada em quatro evangelhos, e é considerada a única verdadeira pela Igreja Católica.

Outras, narradas por alguns dos mais importantes escritores do mundo moderno, que talvez sejam apenas fantasias, são muito mais interessantes e criativas.

Vamos falar sobre quatro delas e seus autores (Norman Mailler, Nikos Kazantzakis, José Saramago e Gore Vidal), aproveitando a chegada de mais uma Semana da Páscoa, quando novamente vai se falar muito sobre Jesus Cristo

Norman Mailler (1923/ 2007)

É talvez o mais polêmico dos modernos escritores americanos. Crítico do socialismo, do capitalismo americano e do feminismo especialmente, é autor de alguns dos principais romances americanos do século, em obras que misturou fatos reais com sua fértil imaginação, principalmente nas pretensas biografias de Marylin Monroe (73), Lee Oswald (96) e Hitler ( Uma Casa na Floresta/ 2007). Mailler será sempre lembrado pelos seus livros Os Nus e os Mortos, Um Sonho Americano, Os Degraus do Pentágono e a sua visão profana de Cristo em O Evangelho Segundo o Filho, além das suas frases pro vocativas, como estas de um machismo assumido:

"Porque há muito pouco de honra  na vida americana, há uma certa tendência construída para destruir a masculinidade nos homens americanos'.

'A revolução feminista transformou a mulher num tipo de homem que me aborrecia muito quando eu era jovem: alguém que tinha que trabalhar das nove até as cinco, de uma maneira monótona e sem ser dono do seu destino. Foi assim que terminou essa revolução e esse assalto ao poder".

 

O Evangelho Segundo o Filho é considerada uma obra menor na carreira de Norman Mailler, mas nem por isso destituída de interesse. A ironia do autor está sempre presente ao descrever um Jesus Cristo humano e atrapalhado, como no famoso episódio da transformação de água em vinho, quando é repreendido pelo anjo por gastar milagres à toa: "Assim como um barril transbordante de mel pode ser esvaziado, o Filho tolo desperdiça seu estoque de milagres".

 

Nikos Kazantzakis (1883/1957) - É considerado o mais importante escritor grego moderno e se tornou famoso no mundo inteiro quando seu livro Zorba, o Grego, foi levado para o cinema, em 1964, por Michael Cacoyannis, com Anthony Quinn, no papel de Zorba e com uma trilha musical de Mikis Theodorakis, quase tão lembrada quanto o fi lme. A versão de Kazantzakis para a história bíblica se chama O Cristo Recrucificado e tem um sentido intencionalmente político.

Na pequena aldeia grega de Licovrissi,dominada pelos turcos, a reconstituição do julgamento e condenação de Cristo durante a Semana Santa, realizada a cada sete anos, é uma oportunidade para denunciar os turcos usurpadores como os novos romanos e os sacerdotes ortodoxos gregos como traidores da causa nacionalista. Quem faz essa denúncia é Manolios, um agricultor inculto, que incorpora a figura do Cristo. O livro também foi levado ao cinema num filme memorável de Jules Dassin, chamado Aquele que Deve Morrer, com Pierre Vanneck (Manolios/Cristo), Melina Mercouri (Katerine/Maria Madalena) e Jean Ser vais (Pope/ o Padre).

Kazantzakis tem ainda outro livro onde aborda de uma maneira totalmente contrária aos evangelhos, a história de Cristo. O livro se chama A Última Tentação de Cristo e também virou filme em 1988, direção de Martin Scorsese, com Willen Dafoe (Cristo), Harwey Keitel (Judas) e David Bowe (Pôncio Pilatos).

Na história de Kazantzakis, aconselhado por um anjo, Jesus desce da cruz e reencontra Maria Madalena. Um tempo depois, após a morte de Maria Madalena, se casa com Marta, passando a viver como um homem comum, até o dia que encontra Paulo que pregava sobre o Messias e seu sacrifício. Jesus desmente essas afirmações, mas Paulo diz que seguirá pregando de qualquer maneira. No final, Jesus vive suas últimas horas, momento em q ue os antigos apóstolos voltam e o recriminam por não ter consumado sua paixão. Quando Jesus tenta explicar que foi um anjo que lhe deu esse conselho, os apóstolos reconhecem o diabo no suposto anjo. Jesus se levanta do leito e volta ao Calvário para consumar seu sacrifício.

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Para Kazantzakis, "um homem de verdade é aquele que resiste, que luta e que não tem medo de dizer não, nem mesmo que seja para Deus, quando isso é necessário".

 

 

José Saramago (1922/2010)

O grande escritor português, José Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e será sempre lembrado por ter escrito, em seu estilo inconfundível, obras primas da literatura portuguesa como Ensaio Sobre a Cegueira, Ensaio Sobre a Lucidez, Todos os Nomes, o Homem Duplicado e a Caverna, mas foi com O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que ele recebeu os maiores elogios dos seus admiradores e as críticas mais pesadas da tradicional igreja católica portuguesa,ao recriar um Cristo humano e preocupado com as questões sociais dos trabalhadores historicamente injustiçados.

Fiel às suas posições políticas de esquerda, Saramago viveu longe de Portugal, nas Ilhas Canárias, seus últimos anos de vida.

No seu Evangelho, Saramago não poupa críticas à religião estabelecida: "No fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as religiões, por nocivas à Humanidade", ao mesmo tempo em que faz uma releitura dos valores do mau ladrão da versão bíblica: "um homem muito reto, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza".   

Gore Vidal (1925/2012)

Gore Vidal foi um dos maiores escritores americanos. Filho da nobreza política da Costa Leste dos Estados Unidos, escandalizou o mundo literário americano com seu livro A Cidade e o Pilar, de 1948, quando abordou abertamente a questão da homossexualidade.


Sua obra, no final da vida, se concentrou na história da antiguidade greco-romana (Criação e Juliano) e na história americana (Burn. Washington DC, O Império e Lincoln) contadas em forma de grandes romances. 


Gore Vidal era um apaixonado pelo cinema, o que levou a ser o roteirista de alguns filmes, inclusive do célebre Ben Hur, de Willian Wyller, no qual ele disse ter inserido um subtexto gay nas relações de Ben Hur com o legionário Massala. O engraçado é que Charlton Heston (Bem Hur) que sempre defendeu posições conservadoras, sendo inclusive presidente da National Rifle Association, disse que nunca percebeu a intenção de Gore Vidal.

Numa obra menor, Ao Vivo, do Calvário, ele usou toda sua ironia para modernizar a história da crucificação do Cristo.

Num determinado momento, a tecnologia para viajar ao passado está sob o domínio das grandes corporações como a General Eletric e das redes de TV dos Estados Unidos. 
Uma delas consegue os direitos de transmitir ao vivo a crucificação de Cristo. 
A novela relata o desenrolar desse programa levado ao ar diretamente para milhões de lares americanos. 

Sobre religião, disse uma vez Gore Vidal: "A idéia de uma boa sociedade é algo que não precisa ser sustentado com religião e punição eterna. Você só precisa de religião se tiver medo de morrer."


Mailler, Kazantzakis, Saramago e Gore Vidal, com suas visões sobre o Cristo podem ser assuntos interessantes para se discutir agora que se aproxima outra Semana Santa.

Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

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