Delegando ideais e anseios políticos

Creio haver processos psicológicos capazes de nos levar a encontrar personagens e/ou entidades sociais as quais podem passar a personificar ou a corporizar nossos mais íntimos e caros projetos formulados em qualquer um dos inumeráveis escaninhos correspondentes à vivência humana.

Iraci del Nero da Costa *

Creio haver processos psicológicos capazes de nos levar a encontrar personagens e/ou entidades sociais as quais podem passar a personificar ou a corporizar nossos mais íntimos e caros projetos formulados em qualquer um dos inumeráveis escaninhos correspondentes à vivência humana.

Em tal rol comparecem, evidentemente, todos os componentes da vida artística, religiosa, econômica, política e social em geral.

Destarte, terceiros, sejam eles pessoas ou organismos sociais, são passíveis de ser identificados como portadores "objetivos" de projetos ou ideais gestados no espaço mais recôndito, e portanto absolutamente subjetivo, de qualquer indivíduo. Enfim, segundo penso, a pessoa projeta seus desejos personalíssimos numa dada personagem que passa a personificar tais anseios e/ou os transfere para esta ou aquela organização, a qual passa a representá-los, aos olhos da pessoa em questão, como aspirações próprias dessa entidade subjetivamente selecionada.

No plano político o processo ora considerado pode acarretar resultados que se estendem do mero engano a consequências altamente deploráveis; vale dizer, de enganos restritos apenas à pessoa que os motivou a consequências nefastas capazes de espraiar-se  por todo o corpo social. Infelizmente, no campo em tela esta última possibilidade é muito frequente assumindo, algumas vezes, caráter inteiramente deletério. Tal eventualidade deve ser atribuída à ação de um grande número de "crentes" associados à figura malsã de determinado político ou ao poder derruidor de uma facção política pautada por interesses perversos e, portanto, antissociais.

Pessoalmente, enfrentei no campo político várias dessas experiências. Trago para este escrito dois exemplos por mim considerados dos mais confrangedores. 

O primeiro faz-me retornar à juventude e diz respeito à minha adesão incondicional ao antigo Partido Comunista Brasileiro e aos comunistas soviéticos aos quais entreguei a concretização de meus ideais de justiça e de igualdade social. Quanto ao PCB, minhas críticas dirigiram-se, já em junho de 1964, aos seus dirigentes máximos os quais, a meu juízo, adotaram posturas errôneas tanto com respeito ao período que antecedeu a queda do governo João Goulart como nos momentos imediatamente posteriores ao golpe militar de 1964.

De outra parte, naqueles idos dos anos 60 do século passado não me foi possível distinguir as limitações e as aberrações do socialismo real e das práticas levadas a efeito pelo partido comunista soviético que dominava a URSS e seus satélites. Destarte, apenas tardiamente me foi dado entender e passar a criticar, sempre de uma perspectiva inspirada nas ideias centrais de Marx, Engels e Hegel, os desvirtuamentos ideológicos, políticos e econômicos que marcaram sete décadas da história daqueles povos. Felizmente não vi fugirem meus ideais e continuo a almejar o estabelecimento, ainda que seja concretizado num futuro muito distante, de uma forma superior de sociabilidade humana.

O segundo exemplo prende-se à figura do sindicalista Luiz Inácio L. da Silva, em quem vi encarnada não só a luta do proletariado, mas o conjunto todo das reformas necessárias para elevar o Brasil a um patamar de justiça social digno e paradigmático. Emprestei a esse sagaz sindicalista a dimensão de um político ideologicamente comprometido com objetivos situados muito além da mera luta sindical limitada aos marcos do modo de produção capitalista. Só tardiamente, quando seu primeiro mandato presidencial alcançava mais de cem dias, percebi suas imensas precariedades políticas. Não só não trazia consigo o desejo de superação do capitalismo, mas se comportava de modo condenável e demonstrava pretender, apenas, ocupar o poder pelo poder, aparelhando o Estado com seus apaniguados e disposto aos mais reles acordos com forças políticas de qualquer cor ou estrato, inclusive as que havia condenado duramente no passado. Verifiquei, então, tratar-se apenas de um dirigente sindical, capaz, é verdade, de lutar pelos interesses de filiados a um sindicato, porém inteiramente inapto enquanto líder político ideologicamente preparado para implementar mudanças substantivas na situação econômica e política em que nos encontramos submersos de há tanto.

Só então, passadas essas e outras experiências, e vendo-as igualmente presentes, sob os mais variados matizes, em muitos amigos e amigas, conscientizei-me da existência do alienante processo psicológico apontado na abertura desta crônica, mecanismo este que atua no sentido de alonginquar ainda mais minha almejada sociedade igualitária.

 

* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.

 

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