Hora de investir no povo brasileiro

A crise econômica chegou. As autoridades de governo evitam comentários alarmistas. Desempenham o papel que lhes cabe no olho do furacão. Afinal, alguém tem de se mostrar sereno quando as cores do caos começam a turvar o horizonte. Não medem esforços para exaltar o vigor do sistema econômico nacional. Mas os indicadores financeiros apontam para rumo oposto. Não há previsão de chuvas no terreno da economia real. É seca a perder de vista.


O país de território imenso sente que lhe falta chão. Caminha temeroso. Busca pontos de apoio sólidos para dar novos passos. Hesita. Não quer equivocar-se nas decisões. Sabe que não pode errar. Abre a janela para o mundo. Observa. O tempo continua assustador. Procura exemplos diferentes em que se mirar. Frustra-se. Os cenários se repetem. São todos iguais. É a penúria global da criatividade. A lógica de um modelo em desagregação. A imagem envergonhada do paraíso fictício que alimentou ilusões, enriqueceu espertos e quebrou gigantes imprevidentes. O fim de uma era, talvez. Ou de mais um império, quem sabe.


Tomado de surpresa pelo vendaval que vem de fora, o Brasil se encolhe. Protege-se. Tenta escapar incólume, mas é impossível. Reproduz ações sugeridas por outros mercados. Desconfia. Discute muito e faz pouco. Não vê saída. Prolonga expectativa. Aposta em milagre. Só que o milagre econômico, já vivido no passado, não é boa referência para o presente.


Fora do investimento seguro não há salvaguarda possível. É preciso ampliar a visão, ensaiar ousadia, voltar-se para a própria realidade. Procurar aqui mesmo a garantia de crescimento econômico e desenvolvimento original. Algo que a promiscuidade até então mantida com investidores sem fé nem lei foi incapaz de gerar.

Não dá mais para acreditar em commodities, spreads, mercadorias e futuros, títulos podres, compra de bancos falidos e tantas outras manobras espúrias que movimentam os gráficos da abstração financeira, tão fascinante quanto devastadora. Sem base econômica fundada em fonte genuína de produção, o país não terá fôlego para realizar a dimensão humana que se avoluma vibrante em suas entranhas.


A hora é de investir no povo brasileiro. A grandeza potencial desse patrimônio econômico singular ainda não foi bem percebida. É a riqueza mais original do continente. Muito visível aos olhos dos estrangeiros que a conhecem de perto. Pouco cogitada pelos que a integram. E nem é necessário mergulhar nas profundezas do pré-sal para encontrá-la.

Basta imergir na alma do povo para a deslumbrante descoberta da combinação harmônica de raízes étnicas diversas e ilimitadas. Basta apreciar as tradições culturais, as festas populares que restam inteiras para se dar conta de como se formou a gente deste lugar, na invejável policromia de corpos e almas em que se expressa a extrema unidade de conteúdos em tão equilibrada variedade de formas. É a riqueza não valorizada que povoa as praças, circula pelas ruas, anima as esquinas, enche os estádios, celebra cultos, vivifica rituais, assimila modas, habita botequins, sobe morros, desce baixadas, canta alegrias, dança sonhos no caudaloso rio de dramas e tragédias que inundam o cotidiano. É o produto interno não bruto que ainda mantém em alta a bolsa de valores humanos sem os quais a sociedade decompõe-se.


Na alma do povo brasileiro preservam-se a cordialidade, a comoção solidária, a interação fraterna, o sorriso franco, o choro sentido, a amizade incondicional, o interesse pela vida. Esse é o aqüífero mais guarani que o país não sabe que possui. A fonte inesgotável de todas as águas que fazem girar o motocontínuo da brasilidade. Tanta riqueza ignorada perde-se, contudo, no abandono social em que sobrevive.


Até hoje o Brasil insistiu em manter a ordem econômica que só favoreceu a prosperidade de outros povos. Acumulou muito capital financeiro à custa da escravidão de seu capital humano. Terá de libertá-lo. A única opção é investir com a certeza de melhor retorno. Proporcionar saúde e educação de qualidade à sua gente, desde a concepção até a idade provecta. Prover moradia digna; espaços urbanos decentes; segurança; transporte de cidadãos, não de gado; trabalho e lazer. Proteger a infância e a adolescência como redutos de originalidades transformadoras. Dar ao povo a igualdade de direitos que não tem, a chance de converter virtudes humanas em valores existenciais tangíveis. Chegou o momento de subverter a ordem econômica em favor de uma ordem social que permita a expansão de toda a riqueza do povo brasileiro.

Dioclécio Campos Júnior
Médico, professor titular da UnB e presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria

In Correio Braziliense Brasília, sábado, 15 de novembro de 2008

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