Correm demasiados boatos sobre o modo de fazer justiça em Portugal para que seja possível frustrar a expectativa gerada pelo anunciado Congresso. Os agentes judicários, diz-se com base em exemplos de que cada um guarda aquele que lhe bateu mais próximo, tratam da sua vida profissional e corporativa com zelo proporcionalmente inverso ao respeito devido aos princípios que a constituição, os códigos e os manuais de direito mandam defender.
Infelizmente não se pode dizer que o prestígio de algum dos corpos de autores da justiça não esteja afectado por tais preconceitos correntes no anedotário nacional. De modo diferente, consoante as funções, o desprestígio geral do sistema e dos resultados da justiça mancha a todos. Incluindo o estado e o próprio carácter do povo português, para quem nos observe do estrangeiro. Em favor da justiça – tanto no seu aspecto doutrinário e idealista como no seu aspecto prático e soberano – não colhem argumentos de defesa da honra própria quando é a justiça que está desonrada, faz já alguns anos.
O escândalo da Casa Pia permitiu ultrapassar a gritaria que as magistraturas nos habituaram sempre que a comunicação social dava acolhimento a alguma crítica ao sistema judicial, mesmo quando elas vinham de juizes. Sem querermos aqui escalpelizar razões, a verdade é que explodiram debates sobre vários aspectos da justiça, desde a corrupção aos direitos humanos, que se fixaram primeiro nos temas da prisão preventiva e do segredo de justiça, aos quais se juntaram outros problemas, desde as garantias de defesa à qualidade da formação dos magistrados ou às práticas de investigação. Não é agora a altura de voltar atrás na liberdade de discussão pública sobre a necessária reforma do sistema judicial.
Ao invés. Portugal precisa de investir – não apenas dinheiros – no pilar judiciário da sua democracia, sob pena de desmoronamento das instituições e do próprio país. O descrédito da justiça portuguesa é interno e internacional. Por isso mesmo passou a ser, deve ser, um assunto dos portugueses, sem dúvida fundamental para que saibamos o que desejamos fazer da nossa soberania, da nossa cultura, da nossa maneira de viver. Queremos reconstruir privilégios dos ricos e dos poderosos, intocáveis, ou queremos lutar para, pelo menos perante a lei, sejamos todos iguais? Nenhum agente judicial deve faltar à chamada para transformar a justiça portuguesa em algo que nos possa orgulhar. Principalmente não o deve fazer em nome do privilégio de direito de censura contra certo tipo de argumentos, vindos a público, fundamentados na prática e nos factos sobejamente conhecidos de todos, por muito que doam ou que possam ser controversos. É exactamente de controvérsia que precisamos.
O Dr. António Marinho Pinto foi chamado a depor na Assembleia da República na qualidade de presidente da comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados. Disse, como era sua obrigação, aquilo que lhe vai na alma e fez sugestões concretas sobre como medidas legislativas poderiam ajudar a superar a situação, tal como a vê. Cumpriu com a sua estrita obrigação de ajudar os parlamentares, e o país, ao falar verdade, a sua verdade, doa a quem doer, como é hoje imperativo cívico de todos os portugueses, nestes tempos difíceis. Fê-lo a coberto das actividades próprias de um órgão de soberania constritucionalmente separadas dos outros poderes de soberania.
Fará sentido que uma associação de magistrados, cuja função é serem os primeiros e últimos garantes das liberdades e garantias dos cidadãos, em nome da parcela de soberania que cabe à justiça, venha a terreiro amuar, enfiar a carapuça das críticas e procurar condicionar seja quem for que venha a ser chamado a depôr na Assembleia da República sobre temas de justiça?
2003-06-05 António Pedro Dores Sociólogo
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