por Vitor Augusto Faria Pereira[1]
Dados de 2024 indicam a existência de 11,5 milhões de microempreendedores individuais (MEIs) ativos no Brasil. Desses, segundo uma recente pesquisa da economista Bruna Mirelle Alvarez (FGV-EESP), 53% atuam como empregados a serviço de empresas e não como trabalhadores autônomos. Esse fato é um alarmante retrato do fenômeno da pejotização no país.
Publicada na segunda metade do século XVI, a obra "Discours de la servitude volontaire" retratou a irresignação do jovem autor Étienne de La Boétie diante do que acreditava ser a entrega voluntária da liberdade de muitos ao jugo de um só. La Boétie não compreendia os motivos pelos quais os europeus, apesar do fim da obscuridade do medievo, continuavam a servir monarcas absolutistas que edificavam seu governo sem a necessidade de recorrer à força física para subjugar seus súditos. Assustadoramente, 500 anos depois, uma das grandes questões da segunda década do século XXI perpetua a dúvida do jovem francês: por que milhões de trabalhadores se submetem "voluntariamente" ao jugo da precarização do trabalho?
De volta ao século XVI, La Boétie, expoente do humanismo iluminista, lamentava-se ao "ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um". Aqui identificamos um elemento essencial para a resposta perseguida por La Boétie. Tal "encantamento" pode ser interpretado, na contemporaneidade, sob a ótica da "ideologia".
Obviamente, La Boétie desconhecia o conceito de ideologia, que foi esmiuçado no âmbito das relações de trabalho por Marx, a partir de Hegel, alguns séculos depois. A dialética hegeliana propunha que os movimentos históricos ocorriam a partir dos conflitos do Espírito (Geist) em um processo de "autodescobrimento". Nesse processo, o Espírito, que pode ser compreendido como a totalidade racional autoconsciente da humanidade, é movido por afirmações e negações constantes (dialética), buscando superar consensos e interpretações anteriores e, assim, criando novas ilusões que se interiorizam na consciência coletiva. Sergio Paulo Rouanet explica que, para Hegel, mesmo o Iluminismo, em seu afã de escapar da ilusão teológica, acaba por mergulhar em uma ilusão própria. Assim, pode-se concluir que todo processo humano, mesmo aqueles que tendem a tecer uma crítica à ideologia, acaba por originar uma deturpação própria da realidade. Isso impede dizer que tudo é ideologia.
Dessa forma, a ideologia pode ser descrita como um falseamento da consciência humana, decorrente de sua incapacidade de acesso cognitivo pleno à realidade. A partir dessa formulação, concluímos que o ser humano sempre possui uma compreensão inacabada da realidade, ou seja, em constante construção e, portanto, instável, pronta para ser totalmente negada e, assim, superada infinitas vezes.
Em Marx, há a transformação da abstração ideológica verificada em Hegel para a materialidade das relações de produção e de troca mercantil que intermedeiam as relações humanas no capitalismo. Negando o movimento dialético do Espírito como fato gerador da ideologia, o comunista prussiano explica o processo ideológico como um movimento histórico não apenas efetivo, como descreve Hegel, mas essencialmente material, confiscando a objetividade humana.
É claro que, neste ponto, o leitor pode estar confuso diante de tamanha teorização do que é ou não é (tudo é) ideologia. Para facilitar a compreensão, voltemos ao objeto do presente artigo, qual seja, a uberização "voluntária". La Boétie, ao manifestar sua irresignação com o que chamou de servidão voluntária dos europeus do século XVI, não teve a oportunidade de enxergar sua problemática sob a crítica da ideologia. Sob tal ótica, La Boétie compreenderia que aquilo que entendeu como "voluntário" na verdade se fundamentava em uma deturpação da realidade, historicamente e materialmente determinada, necessária para que o servo compreendesse sua identidade individual no mundo unicamente como servo. Assim, tomando consciência de sua pequenez servil, a vassalagem se impunha como o único meio de manutenção de sua existência física naquela sociabilidade. Para o servo, a condição servil era a explicação concreta de sua existência no mundo, ou seja, servir proporcionava-lhe um sentido de existência que o motivava a continuar vivo. O contrário disso seria uma vida sem sentido algum. Assim, essa formulação ideológica tornava a violência desnecessária, uma vez que a servidão, nesse viés, era antagonista da morte existencial.
Contudo, nossa proposta é encontrar eventuais respostas para a atual uberização “voluntária” observada no presente momento histórico. Em todo o mundo, mas principalmente nos países emergentes da América Latina, que experimentaram um processo de melhora das relações de trabalho com a chamada Onda Rosa dos anos 2000 - guinada progressista representada por governos como Hugo Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na Argentina, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e Evo Morales na Bolívia -, está em curso um sistemático ataque às conquistas adquiridas a duras penas pelo mundo do trabalho, causando uma desintegração quase total da classe trabalhadora.
O ponto curioso é que esse processo de desregulamentação da legislação trabalhista conta com o relevante apoio da própria classe trabalhadora, principalmente entre os mais jovens, que negam a estabilidade das leis trabalhistas como um objeto de desejo, em detrimento de um estranho conceito de "empreendedorismo", enxergando a regulamentação da relação de emprego como um instrumento de imobilidade econômico-social. Todavia, em contradição com as formulações dos marxistas do século XX, a revolta do proletariado contra a superestrutura jurídica de controle do trabalho não seguiu o rumo da revolução socialista, mas, pelo contrário, desaguou em um fenômeno totalmente oposto, denominado uberização.
A uberização faz com que o trabalhador abdique de todas as suas garantias, outrora exigidas como contrapartida do empregador (13º salário, férias, previdência etc.), em favor de uma falsa autonomia. O grande trunfo dessa máquina de precarização do trabalho está na promessa e sedução da apropriação ideológica do produto do trabalho pelo próprio trabalhador. Ou seja, o motorista de aplicativo, o personal trainer, a vendedora de cosméticos e o prestador de serviços passam a se enxergar como detentores do seu tempo, não mais explorados por um patrão vil, mas, a partir de então, proprietários do genuíno produto de seu esforço. A lógica pregada é a seguinte: "Acorde cedo, trabalhe enquanto eles dormem e o céu será o seu limite".
Infelizmente, essa apropriação é tão real quanto um sonho em uma noite de verão, não sendo mais do que um produto essencialmente ideológico. Na realidade, as plataformas digitais e o grande empresariado continuam extraindo incessantemente, e mais do que nunca, o lucro sobre o trabalho desses agentes, agora despojados das garantias mínimas, em uma verdadeira jogada de mestre.
Um outro alemão pode nos ajudar a compreender o fenômeno da uberização "voluntária" pela vertente do prazer. Freud denomina "princípio do prazer" o processo cognitivo de reencontro do sujeito com o objeto perdido pela alienação. No nosso contexto, o trabalhador simplesmente se cansou das garantias mínimas conquistadas pela social-democracia e quer de volta sua subjetividade oriunda do produto de seu trabalho. Agora uberizado, embora submetido a 12, 14, 16 horas diárias de trabalho ininterrupto, regozija-se com a possibilidade de tornar-se o próximo milionário de origem humilde. Mesmo exausto, seu inconsciente se alegra ao saber que não há cartão-ponto para controlar sua jornada. Assim, o prazer de sentir-se livre das amarras da CLT torna a precarização do trabalho um processo sedutoramente irreversível e incompreendido pela esquerda tradicional.
Assim, a subjugação de muitos em favor de poucos detentores dos meios de produção não é, como nunca foi, uma escolha voluntária, mas sim um reflexo da deturpação da realidade imposta pela ideologia. Esse mecanismo, mais eficaz do que qualquer instrumento de coerção física já concebido por tiranos, mantém a exploração travestida de autonomia e a autoflagelação confundida por virtude, perpetuando um ciclo de dominação constituinte da atual estrutura social.
[1] Vitor Augusto Faria Pereira é acadêmico de Direito; e-mail: vit_augusto@hotmail.com
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter
url da página de erro:
texto contendo erro:
O seu comentário: