A revolução colorida de junho de 2013

A guerra híbrida, o caos sistêmico e a disputa pelo poder global obrigam o Brasil a encontrar o norte estratégico perdido.

A revolução colorida de junho de 2013

"Menciono a presença do almirante John Richardson, chefe de operações navais da Marinha dos EUA, e do almirante Sean Buck, comandante da quarta esquadra e forças navais do comando do sul dos EUA. Estivemos juntos em três guerras mundiais e é essa parceria que estamos dando continuidade", disse o almirante Ilques Barbosa durante seu discurso de posse como novo comandante da Marinha brasileira no dia 9 de janeiro de 2019 no Clube Naval de Brasília.

O que praticamente toda a grande imprensa brasileira tratou como uma gafe( a referência do almirante à supostas três guerras mundiais), na verdade, de maneira implícita, nos dão alguns atalhos para entender as razões que levaram o Brasil ao atoleiro institucional em que se encontra.

Hoje já podemos afirmar com segurança que os acontecimentos de junho de 2013 no Brasil foram o estopim para o posterior caos sistêmico que culminou na quebra da ordem constitucional que levou a queda da presidente Rousseff e posteriormente à prisão política do ex - presidente Lula.

Todo o circo montado como algo supostamente espontâneo consistiu na aplicação do recurso mais sutil da chamada guerra híbrida, ou guerra de quarta geração: a revolução colorida.

Com o uso de técnicas de psicologia de massas, o uso das redes sociais ( no caso de 2013, Facebook e Twitter), e a participação ativa dos meios de comunicação hegemônicos , criou-se o ambiente de guerra em rede, em que a massa se levanta espontaneamente e de maneira horizontal - sem líderes- contra o establishment, ou contra tudo isso que está ai...

E com o Facebook em particular- por suas peculiaridades que propiciam seu uso como ferramenta para essas operações psicológicas ;com a utilização e o cruzamento de dados dos perfis psicológicos que involuntariamente o próprio usuário disponibiliza- conseguiu-se implantar no seio da sociedade brasileira uma espécie de "vírus" que se espalhou como um enxame de abelhas que agem por impulso contra um inimigo intangível, mas que em pouco tempo e como num passe de mágica ganhou nome e sobrenome: Partido dos Trabalhadores.

Não é de surpreender, com o pequeno distanciamento histórico que já temos, que no ano seguinte às citadas manifestações de 2013, um juiz de província com estreitas ligações com o departamento de justiça americano, tenha iniciado uma saga persecutória contra o ex presidente Lula utilizando-se de atos excepcionais praticados à revelia da Constituição, e do uso instrumental do direito para fins políticos. Sendo sempre veloz em seus atos quando se tratou de constranger e depois condenar o ex presidente a tempo de acompanhar o calendário eleitoral e assim evitar que o mesmo pudesse novamente se candidatar.

Atualmente o citado juiz de província é o ministro da justiça do governo Bolsonaro; e recentemente apresentou projeto de lei ao parlamento brasileiro que busca, mesmo que indiretamente, subordinar o sistema de justiça do país aos ditames do departamento de justiça dos Estados Unidos.

A guerra econômica

Passados poucos anos daqueles acontecimentos, de 2014 a 2016, o PIB per capita no Brasil caiu 3 mil reais, e o aumento do desemprego, de 2014 a 2017, passou de 6,8% para 12,7%, segundo o próprio secretário de política econômica ( SPE) do atual governo brasileiro, Adolfo Sachsida, em entrevista recente.

Vive-se no Brasil uma estranha sensação de terra arrasada pós guerra, mesmo não tendo havido exatamente uma guerra em nosso território. Mas de fato, o juntar das peças nos leva a intuir que o Brasil foi alvo de uma sofisticada estratégia de guerra híbrida, que mesmo não tendo alcançado seus estágios mais dramáticos de guerra não convencional - como no caso da Venezuela atual - , ou mesmo descambado para algo mais sério, como grupos insurgentes armados e táticas de guerrilha , o que ocorreu foi o suficiente para derrubar o governo ; deixar a economia arrasada e o país de joelhos e humilhado diante do resto do mundo.

Portanto, diante da não suficiência da revolução colorida de junho de 2013 para derrubar o governo Rousseff - visto que as eleições de 2014 foram vencidas por ela - , partiu-se para uma das facetas de guerra econômica que os americanos passaram a manejar muito bem logo após a crise mundial de 2008.

Pondo fim a desregulamentação irrestrita do mercado financeiro pré 2008, os americanos, durante o governo Obama, e à partir do FED, implementaram o controle financeiro global, ou seja, todos os recursos financeiros circulantes globalmente deixaram de ser controlados por bancos privados e passaram necessariamente a ter o controle direto do FED, o banco central dos Estados Unidos.

Não existem mais intermediários, portanto. Diante do fato de que a moeda de referência global é o dólar americano, qualquer pessoa, instituição, ou mesmo Estado nacional que se tornar uma ameaça aos interesses dos Estados Unidos poderá ser alvo das sanções econômicas deste país.

No caso específico do Brasil, as sanções econômicas se impuseram de maneira sorrateira por meio de acordos de cooperação entre o departamento de justiça americano e setores específicos do Ministério Público Federal e da justiça federal brasileira.

Tendo o combate à corrupção como justificativa para suas ações espetaculosas e midiáticas, a chamada operação lava Jato, comandada pelo hoje ministro da justiça Sérgio Moro, conseguiu, somente em 2015, impactar negativamente a economia em R$ 142 bilhões, ou 2,5 % do Produto Interno Bruto ( PIB) daquele ano, afetando principalmente a Petrobras -maior empresa brasileira- que na época representava cerca de 10% do PIB nacional; bem como toda a cadeia produtiva que a cercava.

O caos sistêmico e a disputa pelo poder global

A projeção internacional do Brasil durante os anos do governo Lula alcançou praticamente todos os espaços de sua zona de expansão, e progressivamente o país viu sua liderança na América do sul se fortalecer com a institucionalização do Mercosul e a criação da Unasul. Viu também o interesse pelo Atlântico Sul - nosso Mare Nostrum- se renovar com os projetos estratégicos da Marinha no desenvolvimento de novos submarinos ( inclusive nucleares), e o sistema de gerenciamento da chamada Amazônia Azul. Induzimos o retorno de nossos interesses estratégicos na África do Atlântico Sul, reafirmando laços diplomáticos e econômicos no melhor modelo ganha-ganha; principalmente com aqueles países com os quais mantemos laços culturais e linguísticos históricos mais enraizados, e por fim, concretizamos algo até poucos anos atrás considerado inimaginável: a adesão do Brasil aos acordos que resultaram na criação e aprofundamento do grupo de países que convencionou-se chamar de BRICS, e é ai que reside o grande problema...

O renascimento da Rússia como potência militar, e a ascensão da China como potência econômica neste início de século, vem justificando o acirramento de tensões em torno da disputa pelo poder global que se acentua perigosamente desde meados de 2012 aproximadamente.

Estupefato, o mundo assiste a abertura chinesa para o mundo, que rompendo com sua opção histórica pelo isolamento, constrói as bases iniciais de um projeto expansionista e de poder naval inéditos. Diante disso, o alerta que talvez tenha soado nos altos comandos estratégicos dos Estados Unidos certamente dizem respeito ao aumento da presença naval chinesa no mar do sul da China, e a construção de sua primeira base militar internacional erguida no pequeno país africano do Djibuti. Bem como, o mundo assiste a extraordinariamente rápida recolocação da Rússia como potência bélica mundial, tendo inclusive ultrapassado os Estados Unidos na disputa hipersônica, sendo portanto, a única potência capaz hoje de responder a qualquer ataque militar de maneira rápida e avassaladora.

A aliança geoestratégica desenvolvida entre os dois atores considerados revisionistas pelo nova estratégia de defesa americana( China e Rússia)e o Brasil, à partir dos BRICS, posicionaram o gigante sul americano no alvo da potência hegemônica, que se vendo ameaçada em seu próprio quintal, e a ruir seu poderio unipolar, muda radicalmente de estratégia, abandonando as liturgias do sistema internacional por ela mesma criado à partir do pós II guerra, e impondo seus interesses a qualquer custo e contra qualquer um que os ameace.

O tempo do respeito aos acordos e instituições internacionais dá lugar a uma competição desmedida e sem os freios éticos que em situações normais a potência hegemônica da vez procura colocar, por interesse próprio, como forma de manter uma certa ordem mundial harmônica.

A Pax Americana, portanto, acabou, e no seu lugar se inicia uma nova era de conflitos sistêmicos que, ao que tudo indica, e ao se repetir os padrões anteriores ocorridos à partir do século XV, resultará lamentavelmente em guerra global.

A conotação global da América do Sul

A história nos ensina que em momentos como os de hoje acentua-se a competição pela conquista e controle dos recursos energéticos estratégicos, dado que, acompanhada desta acirrada disputa de poder entre Estados nacionais, ocorre também uma quase automática expansão do sistema interestatal, e desta expansão, inevitavelmente, se acentua a corrida armamentista e tecnológica. Tudo isso caminhando junto.

Não por acaso os Estados Unidos saíram do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) em fevereiro de 2019, alegando não conformidade da Rússia às proibições impostas, o que de fato talvez seja apenas uma meia verdade, visto que a China nunca foi signatária e vem cada vez mais aprofundando seus investimentos tecnológicos nessa área.

E não por acaso também, a disputa por trás da suposta guerra comercial entre Estados Unidos e China- e em particular no caso do avanço da gigante chinesa de telecomunicações Huawei- na verdade esconde a disputa pela ponta tecnológica, que está intrinsecamente ligada a disputa pelo protagonismo no avanço militar, algo recorrente ao longo da história, dado que as grandes guerras globais ou hegemônicas sempre vieram acompanhadas de ondas de grandes inovações tecnológicas, e no momento atual essa onda vem sendo chamada de 4º revolução industrial.

Todas essas pistas mencionadas nos dois parágrafos anteriores talvez expliquem o enquadramento que os países da América Latina vem sofrendo por parte dos Estados Unidos para contrapor a presença cada vez maior de Rússia e China nesta região que para os americanos é a sua zona de influência mais próxima.

Sendo assim, a corrida pelo poder global chegou definitivamente às portas do território brasileiro com a pressão agressiva dos Estados Unidos, e o uso de instrumentos de guerra não convencional, nas recorrentes tentativas de derrubada do governo venezuelano.

Não por menos, a grande novidade disso tudo é que a América do Sul voltou de vez a ter conotação global no tabuleiro geopolítico mundial com a descoberta do pré sal brasileiro, mas principalmente, pelas recentes descobertas no cinturão do rio Orinoco, na Venezuela; o que torna aquele país o detentor da maior reserva de petróleo do planeta, calculada em 300 bilhões de barris.

A volta dos militares

A escalada do conflito interestatal é cada vez mais evidente,mesmo que talvez o mundo esteja passando ainda pela fase psicológica de negação da realidade.

Em momentos anteriores da história, como nas guerras pela supremacia mundial que permearam os séculos XVIII e XIX entre França e Inglaterra, a anarquia instaurada nas relações internacionais culminou invariavelmente em caos sistêmico, e posteriormente a esse caos sistêmico a ondas de rebeliões populares, que em seguida levaram novamente a disputas sangrentas entre Estados nacionais

O mesmo ocorreu no início do século XX, em que o desafio alemão à hegemonia britânica levou a duas guerras mundiais altamente destrutivas que eliminaram completamente a ordem mundial do século XIX e serviram de correia de transmissão a movimentos revolucionários de cunho nacionalista por todo o mundo, sendo o mais notório e bem sucedido destes movimentos aquele que resultou na Revolução Russa em 1917.

Diante deste cenário, é possível supor pelo menos algum dos motivos que levariam os militares brasileiros, em pleno século XXI, a se arvorarem a bancar uma aventura insana como a de Jair Bolsonaro.

Talvez imbuídos pelo velho sentimento de dever de tutelar a República nos momentos de desordem institucional, os militares retiraram da manga a empoeirada doutrina de ingerência militar na política pensada por Góis Monteiro. Doutrina usada como desculpa para o intervencionismo militar que vigorou de 1930 a 1964.

Em outras palavras, as eleições de 2018 teriam sido, na prática, uma intervenção militar disfarçada, pois os militares desde a proclamação da República em 1889 se veem como uma espécie de Poder Moderador que pacificaria o ambiente social nos momentos em que as instituições colapsam.

O receio do caos sistêmico global que se avizinha bater a porta da nossa já caótica situação interna levou nossas forças armadas, portanto, a celebrarem um silencioso acordo com o intuito de interromper definitivamente os governos trabalhistas; mesmo que para isso tivessem que eleger um personagem absolutamente incapaz para o exercício da presidência da República.

Sendo assim, entre os dias 10 e 14 de agosto de 2018 - depois de Lula já posto em confinamento militar, e todo o sistema político brasileiro arruinado- a visita do secretário de Defesa americano, James Mattis, também conhecido como Mad Dog, celebrou a escolha de um presidente da República sob tutela das forças armadas.

Em seu discurso de posse ao comando da Marinha, portanto, o Almirante Ilques Barbosa ,ao se referir a aliança estratégica entre Brasil e Estados Unidos, apenas confirma o nosso retorno - depois de breve período de autonomia relativa - à condição de satélite privilegiado da órbita de influência estadunidense.

O problema nisso tudo é saber se esse discurso ainda cabe num mundo que se redesenha de maneira multipolar, e onde os americanos não parecem ter a mesma disposição de outrora para agraciar seus "satélites privilegiados" com qualquer vantagem ou benevolência.

Ou seja, o século XX acabou mas os nossos militares parecem ter perdido o norte estratégico, mantendo o raciocínio no modo binário - analógico de uma guerra fria que já não existe faz tempo.

E a considerar a figura bizarra do presidente da República posto e tutelado por eles ,algo lá no fundo nos diz que essa aventura improvisada não tende a terminar bem.

Referências:

Arrighi, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. São Paulo: Unesp, 1996.

Farias, H.C. Guerras hegemônicas e ordem internacional. In: Fiori, José Luís. Sobre a guerra. Petrópolis: Vozes, 2018.

Fiori, José Luís. Ética cultural e guerra infinita. In: Fiori, José Luís. Sobre a guerra. Petrópolis: Vozes, 2018.

Korybko, Andrew. Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

 

 https://medium.com/@contextogeopolitico/o-vento-frio-que-sopra-na-fronteira-ef35e333a495

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey