Liberdade (in)ferida
Adilson Roberto Gonçalves
Pouco frequento as redes (anti)sociais, mas sou um missivista contumaz, ao menos uma vez por semana algum jornal publica carta de minha lavra. Tenho um hater que resolveu me enviar um e-mail ofensivo toda vez que sai algum comentário meu publicado, especificamente no Estadão, cujo conteúdo, como sói ser, é contrário ao desgoverno instalado em Brasília e as práticas fascistas. Não respondi ainda porque não me incomodou e também não sei o que se passa no vazio entre seus dois ouvidos. Há também o fato de alguma reação minha resultar em ataque direto a minha liberdade, uma vez que o advogado - sim, eis sua profissão - mora na mesma cidade e também já publicou cartas nos mesmos veículos. Chama-me de "rato petista".
Um sociólogo, do qual uso apenas as iniciais P.U.C., publicou carta no Correio Popular (jornal de Campinas) em 16/10/2020 com a seguinte pérola: "o racismo deriva do ateísmo que nega a criação divina". Sim, as pontes sofismáticas que esse grupo constrói são sólidas. O discurso da mentira transforma aqueles com ideias e ideais progressistas, sociais e até revolucionários - esses já longe de serem praticados - em um grupo único chamado de comunistas ou petistas. Além disso, mais perversamente e ferindo de morte a minha liberdade, associam tal grupo à criminalidade estruturada, especialmente a relacionada com o tráfico de drogas, comandado por facções (PCC, CV e congêneres). Comunista é traficante e assassino, eis o resultado do sofisma. Sabemos que os propagadores do discurso do ódio têm base na violência e nos crimes que praticam, mas invertem a lógica da comparação e transformam a política dos outros em crime e legalizam seus crimes na política.
A prática nefasta tem base na mentira, na moral e bons costumes, na família, na crença divina, que é, por fim, o toque final dessas considerações. São interessantes as reflexões atuais sobre os limites da liberdade religiosa, especialmente na alegação de, por exemplo, o indivíduo não poder realizar tarefas em dias da semana considerados santos por ele, criando o que se passou a chamar de o "problema do sábado". O problema real é que, quando se atende a uma exceção de cunho religioso, abre-se a possibilidade para os oportunistas contumazes. Assim foi com a isenção de impostos para igrejas que se transformou em excelente negócio para a teologia da prosperidade. Religião deve ser estritamente de caráter pessoal e íntimo e não pode ter qualquer ingerência na dinâmica da sociedade. Porém, como a religião é uma daquelas cláusulas pétreas que sustentam o discurso do ódio, nada será modificado para se manter benesses e trânsitos políticos muito bem definidos.
Esse conjunto fere a liberdade. Por outro lado, parece que é somente a partir dessa lesão é que se sabe a necessidade da liberdade. Se sinto que está ferindo a minha, está ferindo a liberdade de todos.
Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador da Unesp, membro do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas e da Academia Campineira de Letras e Artes, autor do livro de divulgação científica "Transformações na terra das goiabeiras" (2017).
Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bras%C3%ADlia_Collage.png
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