O fato das migrações constituírem, hoje, uma questão central na maioria das ciências sociais e humanas é revelador quanto à sua importância no cenário político, econômico e social contemporâneo. E não por menos. São mais de 200 milhões de migrantes no mundo. Uma população maior de que todo o Brasil. 20 vezes a população de Portugal. Só no Brasil são quase 1 milhão e meio de migrantes regulares (a população do Recife) e mais de meio milhão de indocumentados (mais de que a população de Florianópolis). No total, o número de migrantes residentes em nosso país gira em torno de 2 milhões. O equivalente à população do estado de Sergipe.
Ou seja, uns 1% da população brasileira considerando a dinâmica contínua de naturalização de residentes regulares. Ou, ainda, mais ou menos o mesmo número de brasileiros residentes (legal ou ilegalmente) no exterior estimativas incertas que oscilam entre 2 e 3 milhões de pessoas! Em todo caso, são números bastante modestos se considerarmos que os Estados-Unidos recebem quase 2 milhões de imigrantes por ano e que o número de indocumentados naquele país gira em torno de 12 milhões. Nossos vizinhos argentinos, com uma população de 36 a 37 milhões de habitantes, contam com um contingente de um milhão e meio de imigrantes.
Porém, se a mídia e/ou a opinião pública se mostram bastante sensíveis ao destino de nossos compatriotas em terras estrangeiras beirando muitas vezes a comoção nacional quando se assiste a episódios esporádicos de expulsões injustificadas ou situações constrangedoras onde, com certeza, são reveladas atitudes preconceituosas e mentalidades racistas (da Europa e América do Norte), há de concordar que o sentimento geral desses mesmos brasileiros para com o devir de homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, sujeitos em busca de oportunidades de sucesso, ascensão social ou, simplesmente, de sobrevivência, é na maioria das vezes de indiferença quase total. Lembremos, por exemplo, que na mesma época que o governo brasileiro reagia veementemente à proibição de entrada de brasileiros na Espanha, mais de 50 bolivianos eram barrados na fronteira brasileira!
O histórico brasileiro e o discurso social que veicula a este respeito, por exemplo, é bastante peculiar. Primeiro, ao contrário de que se imagina, não há excesso populacional no Brasil. A título de comparação, os Estados-Unidos com um território de um pouco mais de 9 milhões de quilômetros quadrados, contam com uma população de mais de 300 milhões de habitantes. Enquanto o Brasil, com seus 8 milhões e meio de quilômetros quadrados não chega a 200 milhões de habitantes. Ou seja, em termos proporcionais, Brasil teria um evidente déficit populacional mais flagrante ainda se considerarmos a tendência ao envelhecimento populacional e a cada vez mais baixa taxa de natalidade. Dito de outra maneira, a emigração (para cá) constitui uma solução e não um problema um motivo de alívio e não de preocupação.
Porém, ao contrário de muitos outros países comparáveis ao nosso, o Brasil nunca se dotou de algumaestrutura séria de imigração. Fora o conhecido episódio de imigração européia e (em menor grau) asiática (mais um reflexo racista do desejo de embranquecimento da população de que alguma atitude racional de gestão populacional), o Brasil sempre foi dominado por uma mentalidade de panelinha, onde as oligarquias simplesmente se recusavam e se recusam a dividir o pedaço (latifúndio rural ou monopólio comercial e industrial urbano) com os recém chegados ou com os subalternos em geral.
No episódio da imigração do início do século XX, por exemplo, a emigração semita (de árabes e judeus) era combatida (tanto na imprensa como no parlamento) por não ser produtiva (rural camponesa substituta da ordem escravatória), mas sim comercial e urbana (que, segundo a lógica oligárquica da época, só se aproveitava do fruto de trabalho e da boa fé dos cidadãos brasileiros). Não é surpresa, portanto que, até hoje, ao contrário dos Estados-Unidos, Canadá, Austrália ou até Argentina, não existe no Brasil alguma instância de imigração.
Parece surreal, mas ao contrário dos países acima citados, não existe alguma via formal e oficial de solicitação de imigração para o Brasil! Pior ainda, uma vez aqui (oficialmente enquanto turista), o labirinto burocrático para a regularização desta situação parece ter sido escrito pelo próprio Kafka. Apenas caricaturando: Quer uma autorização de trabalho? Precisa do visto permanente. Quer o visto permanente? Precisa de uma autorização de trabalho? Círculo vicioso que, infelizmente, muitas vezes leva a alternativas nada honrosas.
É dentro deste contexto social e político que deve ser apreendida a atual anistia migratória. Não é apenas uma questão de compaixão, mas sim de justiça social e de respeito aos direitos humanos mais básicos. E o fato de o Brasil ser ao mesmo um país emissor e receptor de migrantes nos fornece uma oportunidade histórica única para experimentar e conferir a solidez de nossa vocação humanista e humanitária. Temos a obrigação moral e dever ético de tratar os migrantes aqui estabelecidos do mesmo modo que desejamos que nossos conterrâneos fossem tratados em outros países.
E não reproduzir os mesmos padrões mentais e sociais injustos e racistas praticados por aqueles mesmos que se autoproclamam defensores dos direitos humanos e valoresda Civilização. Além do fato que, em termos econômicos, as migrações são comprovadamente um fator de crescimento e prosperidade e não algum peso social que se agüentar. Por todos esses motivos só podemos saudar e aplaudir a iniciativa brasileira de fazer justiça a todos aqueles que aqui vivem, trabalham e inspiram a um mundo melhor.
De fato, a lei da Anistia Migratória brasileira se destaca pela maneira favorável e em sintonia com o desejo de ampliação e acolhimento ao estrangeiro que passa a viver no Brasil, distanciando-se de outros contextos onde a migração pode vir a assumir um caráter de contravenção ou criminalidade. O objetivo da regularização foi trazer para a legalidade e garantir cidadania para os migrantes, que passam a ter direito, por exemplo, aos documentos de identidade e habilitação, carteira de trabalho, saúde pública e educação gratuita.
A anistia concedida aos migrantes pelo governo coloca o Brasil numa posição de vanguarda e converge, inclusive, para com as conclusões publicadas no Relatório de Desenvolvimento Humano 2009 do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que se destinou a desmontar vários mitos sobre a presença de migrantes, e enfatiza a necessidade de os governos perceberem as vantagens dos trabalhadores vindos de fora, especialmente em um momento de crise econômica e desemprego.
Esta é a quarta vez que o Brasil concede o benefício a estrangeiros que já moram no país houve anistias em 1980, 1988 e na última, em 1998, quase 40 mil pessoas foram legalizadas. No entanto, a disposição de regularizar os estrangeiros que chegaram ao Brasil até fevereiro de 2009 não garante a solução dos problemas enfrentados pelos migrantes. Há outros obstáculos de ordem documental (a necessidade de comprovar a entrada antes da data estabelecida), econômica (a dificuldade de pagar as exigidas para a regularização), de (falta de) informação e outras.
Aliás, não se deve esquecer que a regularização em questão é apenas temporária e não definitiva. A obtenção do visto de residência permanente é condicionada ao estatuto profissional do candidato. Ora, a atual realidade do mercado de trabalho não é exatamente marcada pela formalidade e a carteira assinada; principalmente dentre os migrantes mais vulneráveis, geralmente concentrados no comércio ambulante e informal. O que, infelizmente, só reforça a sensação de que a legalização definitiva não passa de uma miragem no caminho de dezenas de milhares de trabalhadores indocumentados.
A mobilização, portanto, não deve ser pontual e se limitar ao objetivo imediato de regularização dos migrantes aqui estabelecidos, mas sim almejar uma maior informação e sensibilização de toda a sociedade em torno desta causa nobre e legítima.
O PET / LACOSA (Programa de Educação Tutorial e Laboratório de Comunicação Social Aplicada), ao organizar este II Fórum de Imigração, aposta, justamente, na importância de reunir no mesmo os três segmentos sociais que fomentam o debate em torna da questão migratória: a parte institucional (Legislativo, ministério da Justiça, Polícia Federal, etc..), a parte associativa (representantes dos imigrantes e organizações que trabalham junto a eles) e a parte acadêmica (pesquisadores e estudiosos da problemática).
PET/LACOSA já tem a seu ativo a organização do I Fórum de Imigração do Rio de Janeiro e o Observatório de Acompanhamento e Análise da Mídia Étnica das Comunidades de Imigrantes estabelecidas no Brasil . Atualmente o Laboratório investiga o Papel da Mídia Comunitária Étnica Nacional na Consolidação da Identidade Transnacional dos Grupos Imigrantes no Estado do Rio de Janeiro.
Os organizadores
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