O povo brasileiro não está acostumado a ver desnudar-se a seus olhos a vida particular dos homens públicos... A prática da democracia recomenda que o povo saiba tudo o que for possível saber sobre seus homens públicos, para poder julgar melhor na hora de elegê-los.
O trecho acima faz parte do editorial do jornal O Globo de 14 de dezembro de 1989, intitulado O direito de saber, publicado na véspera do segundo turno da eleição presidencial. Dias antes, Collor de Mello, o caçador de marajás forjado nos sinistros laboratórios da famíglia Marinho, havia levado à TV a ex-mulher de Lula, Mirian Cordeiro, que acusou o candidato das esquerdas de tê-la induzido a abortar uma filha, oferecendo-lhe dinheiro. Na ocasião, a mídia venal não vociferou contra esta baixaria. Pelo contrário, difundiu a versão e exigiu o direito de saber.
Bem diferente da postura adotada agora, quando o programa de TV da postulante à prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, pergunta se o seu opositor, Gilberto Kassab, é casado e tem filhos. A gritaria dos serviçais da Rede Globo, como Ricardo Noblat, Cristiana Lobo e André Trigueiros, é ensurdecedora. Parece que o mundo desabou. Para eles, a candidata insinuou que seu adversário é homossexual, o que é um repugnante preconceito. Outros colunistas imparciais, como Clóvis Rossi e o fascistóide tucano Reinaldo Azevedo, também ficaram indignados. Pura hipocrisia.
Cruzada sórdida contra Marta
De fato, o comercial da candidata é errado por atiçar a homofobia. Ele também é questionável, já que pode representar um tiro no pé, uma ação desesperada de quem ficou em segundo lugar no primeiro turno e está atrás em todas as sondagens do segundo turno. Somente as novas pesquisas e, principalmente, a votação de 26 de outubro, dirão se a peça publicitária teve o efeito desejado. Outra coisa, porém, é a reação cínica do grosso da mídia. Contra Lula, Marta ou outro candidato de esquerda, o direito de saber. Contra os candidatos de direita, é invasão da vida particular.
No triste episódio de Mirian Cordeiro, a mídia sequer averiguou a veracidade dos fatos. Somente após a eleição, que deu a vitória à criatura da TV Globo, é que se soube que ela havia embolsado uma ajuda para encenar no horário eleitoral gratuito. Pouco depois, ela até tentou ser vereadora pelo ex-PFL, atual demo de Kassab. A mídia também nunca criticou a sórdida campanha contra Marta Suplicy, satanizada por defender a livre opção sexual e por ter se separado do ex-marido. Muitas autoridades, que até hoje mantêm suas relações clandestinas, repudiaram sua atitude.
Serviçais dos barões da mídia
A mídia não é neutra ou imparcial, como se mistifica nas faculdades de jornalismo. Ela tem lado, posições de classe e interesses comerciais. Editores e colunistas, com honrosas e raras exceções, nunca desafiam os barões da mídia; servem servilmente e regiamente pagos. Da mesma forma que fazem escarcéu contra a relação extraconjugal do ex-presidente do Senado, que resultou num filho bastardo com uma jornalista, eles escondem outro caso extraconjugal, também com uma jornalista, da TV Globo, e que também resultou num filho bastardo, que hoje reside na Europa. Este caso, que somente a revista Caros Amigos ousou divulgar, envolveu o ex-presidente FHC.
Hoje, a mídia faz alarde contra as insinuações homofóbicas da campanha de Marta Suplicy. Mas em 2004, na véspera de outra eleição municipal, ela não usou da mesma virulência para condenar um panfleto do candidato José Serra intitulado Dona Marta e seus dois maridos. Como observa Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula, a mídia tem dois pesos e duas medidas... Quando se bisbilhotou a vida da Marta, nunca vi a indignação que ocorre hoje... Eu trabalho ao lado de uma pessoa cuja vida é devassada diariamente, que é o presidente Lula... Contra nós, vale tudo.
Massa de manobra das elites
A mídia venal critica a propaganda preconceituosa contra Gilberto Kassab somente por razões eleitoreiras. Como desabafou Luiz Favre, atual marido de Marta Suplicy, a candidata sempre foi alvo do mais rasteiro preconceito das forças conservadoras, amplificado pela mídia. Ele enumera vários artigos publicados pelo jornal Folha de S.Paulo contra a sua honra e da então prefeita da capital paulista. Eu poderia continuar até amanhã de manhã linkando matérias em que a vida de Marta foi enxovalhada e ridicularizada, numa mescla perversa de sexismo e xenofobia... Quando será que os mesmos arautos da falsa indignação reconhecerão o seu telhado de vidro?.
A chamada classe média, que se julga tão iluminada, deveria ficar mais esperta diante de tanta manipulação. Do contrário, continuará sendo uma eterna otária, massa de manobra e joguete nas mãos das forças conservadoras, seja das que patrocinaram o sangrento golpe militar de 64 ou dos que hoje organizam o movimento Cansei e apóiam Kassab. No mínimo, ela deveria consultar outras fontes, evitando reproduzir acriticamente as verdades dos colunistas da mídia hegemônica ou votar em candidatos fabricados pelas classes dominantes.
Altamiro BORGES
http://altamiroborges.blogspot.com/2008/10/kassab-preconceito-e-cinismo-da-mdia.html
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