Brasil: Um espectro tomou conta da academia

Lucídio Bianchetti, professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, foi um dos palestrantes da conferência "Produtivismo acadêmico, produção do conhecimento e alienação do trabalho docente", promovida pelo ANDES-SN no último dia 15 para marcar o Dia do Professor ( leia mais ). Nessa entrevista, ele fala sobre o capitalismo acadêmico, afirmando que essa não é mais uma política de governo, mas sim de estado, enumerando os aspectos negativos dessa situação.

Elizângela Araújo
ANDES-SN

Lucídio Bianchetti, professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, foi um dos palestrantes da conferência "Produtivismo acadêmico, produção do conhecimento e alienação do trabalho docente", promovida pelo ANDES-SN no último dia 15 para marcar o Dia do Professor ( leia mais ). Nessa entrevista, ele fala sobre o capitalismo acadêmico, afirmando que essa não é mais uma política de governo, mas sim de estado, enumerando os aspectos negativos dessa situação.

Bianchetti tem grande experiência na área de educação, com ênfase em trabalho e educação, e é autor e organizador de vários livros, entre os quais " A bússola do escrever - desafios e estratégias na orientação e escrita de teses e dissertações" (com Ana Maria Netto Machado, Cortez Editora/Editora da UFSC) e, mais recentemente, " Educação Corporativa - mundo do trabalho e do conhecimento: aproximações " (com Elisa Maria Quartiero, Cortez e Editora da UNISC).

- Em sua palestra, você brincou com a metáfora marxista afirmando que há um espectro que não mais ronda, mas que já está instalado na academia. Que espectro é esse?


- A metáfora é extremamente interessante. Quando Marx e Engels falavam que o espectro do Comunismo pairava sobre a Europa, isso assustava. No que se refere à academia, o espectro não paira mais, ele já está dentro dela, entranhado. Alguns autores falam que esse espectro se chama enfado, desistência, indisposição. Na verdade, toda teorização sobre burnout, ou a síndrome da desistência, cabe em alguns espaços educacionais, como por exemplo, no Ensino Fundamental e Médio.

Quando você entra na universidade e passa a atuar na pós-graduação, não há mais possibilidade de ocupar esse espaço impunemente. Eu costumo falar que educação é um espaço onde aquilo que você faz não tanto faz, isto é, o que você faz ou deixa de fazer tem implicações. Houve um período em que, se o orientando concluísse ou não o mestrado ou o doutorado, isso era problema dele, não interferia na vida do orientador, na vida do programa, na sua avaliação. Hoje, está tudo tão amarrado, tão entranhado, que para se ter uma idéia, até o início da década de 90, havia em torno de 45% de não conclusões no mestrado e doutorado, hoje, esse número é de aproximadamente 15%, porque a não conclusão do curso repercute na vida do orientador e na vida do programa.

Ou seja, você não tem mais como não ser produtivo e ser incluído. Se você deixar de ser produtivo, você vai ser excluído, e esse produtivo é no sentido de produtivismo mesmo, com todo o tom pejorativo que existe no sufixo "ismo". Então, a idéia desse espectro é: ao mesmo tempo em que você convive com cansaço, estresse, burnout, não há a possibilidade de não cair fora, deixar de fazer.

O produtivismo se tornou auto-aplicável, ou seja, independentemente de governos, já que pode ser caracterizado como uma política de Estado. A impressão que tenho é que as pessoas entram numa máquina de triturar e são incapazes de fazer alguma coisa que gostariam ou acham correto. É nesse sentido que o espectro não ronda, pois não é algo que ameaça, que assusta: Essa cultura do produtivismo está entranhada dentro da universidade e tem gerado concorrência entre áreas, dentro das áreas e entre pesquisadores.


- Como essa concorrência se materializa?


- Na Capes existe um setor chamado CTC - Comitê Técnico Científico. É lá que as avaliações são definidas. Por exemplo, a área de educação faz a sua avaliação e a submete ao CTC, um pequeno comitê com poder de modificar as notas atribuídas aos programas pelas comissões da área, e é o espaço onde se acirra a disputa por verbas.

A partir do momento que, pela reforma do estado, se instituiu a matriz orçamentária, começou a haver uma distribuição de recursos entre ministérios e dentro dos ministérios. Então, a área da educação recebe um recurso que é espalhado pelas autarquias, pelas universidades. Ao chegar na universidade, a concorrência se instala entre os centros; chega ao centro e a concorrência se instala entre os departamentos. Nos departamentos, entre os professores.

O professor mais "produtivo" consegue financiamentos mais facilmente. Essa matriz garante que ao invés da solidariedade, predomine a competição. Houve um momento na história da pós-graduação em educação, por exemplo, em que as pessoas eram solidárias, os programas eram solidários. Na década de 80 o professor Gaudêncio Frigotto e a professora Acácia Kuenzer colaboraram na criação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC, por exemplo, assim como o professor Saviani contribuiu para a estruturação dos programas da UFSCar e da UNIMEP. Hoje é diferente.

A perspectiva empresarial está entranhada na academia. Em resumo, diria o seguinte: toda vez que essa perspectiva se sobrepõe, a escola ou universidade vira empresa; o professor, operário; o aluno, cliente; e a educação, mercadoria.

- A que você atribui o enraizamento dessa mentalidade na universidade brasileira?


- Paulo Rizzo [durante a conferência "Produtivismo acadêmico, produção do conhecimento e alienação do trabalho docente"] chamava atenção para um fato muito importante: essa não é uma manifestação brasileira, é globalizada. Poderíamos até fazer uma brincadeira, dizer que ao invés dos operários do mundo terem se unido, foram os capitalistas que se uniram e, de certa forma, conseguiram orquestrar uma espécie de música de uma nota só. Então, desde os EUA até os países mais atrasados, você consegue perceber os sinais "civilizatórios" do capital e pela primeira vez na história temos uma espécie de caminhar junto entre o que ocorre no mundo empresarial e o que ocorre no mundo educacional.

Durante muito tempo, quando predominou o paradigma taylorista- fordista, empresa e escola tinham ritmos diferentes. Um período em que formamos especialistas e assim atendíamos ao mercado. Mas estávamos sempre ´defasados´. Quando a universidade se tornou competente – no sentido do que falávamos durante a conferência, ou seja, competitiva – para formar especialistas, o mercado diz: "não os quero mais, agora preciso de generalistas".

Aí, temos as quatro fases que você vai encontrar no livro Educação Coorporativa (organizado por mim e Elisa Maria Quartiero), cuja última fase é a educação corporativa, ou seja, uma educação sob medida para os interesses da empresa (1). Então, voltando à sua pergunta, esse enraizamento tem origem na "pedagogização" da empresa e na "empresarialização" da pedagogia, conforme enfatiza o professor José Alberto Correia da Universidade do Porto. É um jogo aparentemente contraditório que está posto. A pedagogia é colocada a serviço da empresa, e a empresa se torna aquilo que o Peter Senge, no livro A quinta disciplina, divulga como espaço qualificante, portanto, segundo esta perspectiva, a "empresa é uma escola".

Eu diria que, com as tecnologias disponíveis hoje, todo espaço-tempo é um espaço-tempo de aprendizagem. Isso parece uma grande vantagem, no entanto, temos que refletir sobre que tipo de valores éticos e morais estão permeando essa educação. Parece que se a escola não bater o pé, a universidade não bater o pé para aquilo que é a sua especificidade, vão ser engolidas. Talvez, assim, perca-se, com a empresarialização da pedagogia, um dos poucos espaços em que se discute o respeito à natureza, à vida, os valores éticos e morais.

- Que espaço essa universidade corporativa já ocupa no Brasil?


- Para mim, o fato mais significativo foi quando, pela primeira vez, há menos de dois anos, a Caixa Econômica Federal construiu uma sede fixa para sua educação coorporativa. Até aquele momento, alugavam-se salas em universidades, em espaços públicos, para cursos pontuais.

Agora, não, as empresas começam a ter seus próprios edifícios destinados à educação, ou seja, não é mais somente uma idéia. Antes, nos perguntávamos por que a empresa tinha a ousadia de chamar um centro de treinamento de universidade. A resposta que tínhamos era que o título indicava uma preocupação com educação. Era uma questão assim, meio idealista, meio metafísica, que não tinha materialidade. Quando a Caixa construiu o edifício, e passou a ter um lugar físico, com pessoas trabalhando nas mais diversas áreas, tudo passou para outro patamar. Não é mais algo que fica no nível da linguagem, do discurso, é algo material. E passam a chamar de professor uma figura que não passa de um instrutor.

- Quais os piores aspectos da universidade corporativa para a carreira docente?


- O maior atentado da universidade corporativa em relação à universidade acadêmica, ao professor, é difundir os conceitos de educação e instrução/treinamento como sinônimos. Temos que pensar na escola como uma instituição que leve em conta a tridimensionalidade do tempo. Ela tem que buscar no passado o patrimônio cultural da humanidade, que é um acúmulo de tudo que foi produzido; isso tem que repercutir aqui, no presente.

Ao mesmo tempo, tem que se preocupar com o futuro. Isso é o que a universidade acadêmica e a escola têm que fazer, cuidar dessa especificidade. Na universidade corporativa, há uma espécie de prisão, de um "presentismo" eterno, mesmo que essa expressão soe contraditória. Tudo se justifica, se explica, se torna necessário e valorizado porque tem uma aplicação imediata. Então, eu acho que o maior atentado é colocar como equivalentes instituições que têm atribuições diferentes, porque da escola e da universidade se espera uma formação humanitária, uma formação universal, capaz de ajudar a pessoa a compreender-se e a compreender o espaço e o tempo em que ela vive. Enquanto a universidade acadêmica tem a perspectiva de abrir-se, incluir, a universidade corporativa se fecha nos interesses da empresa.

- Qual sua opinião sobre a avaliação da Capes?

- É indiscutível que a Capes é um modelo de sucesso no Brasil, ela induziu a produção, com base em um sistema de avaliação econométrico, oriundo da contabilidade. É um sistema de tamanho sucesso que o Chile, o Peru estão copiando, ou seja, é um modelo que pode ser exportado. O seu sucesso está relacionado à sua origem, principalmente quando se conseguiu acoplar avaliação e financiamento.

Países mais avançados não contam com um sistema centralizado como o nosso. Realizei duas palestras em Portugal sobre o sistema de avaliação da pós-graduação brasileira e os pesquisadores portugueses ficaram admirados a respeito da centralização do nosso sistema de avaliação. Em Portugal, cada universidade tem autonomia para abrir ou fechar cursos. Aqui, não, temos que pedir licença, ser acompanhados e prestar contas, pois caso contrário não contaremos com financiamentos.

Da junção desses dois elementos, financiamento e avaliação, deu-se a morte do conceito de avaliação. A avaliação pelos pares é outro fator que ajuda a explicar o sucesso do modelo Capes de avaliação da pós-graduação. Paralelamente, tivemos avanços (foram muitos os pontos favoráveis), como por exemplo, ao deixar de "perder" dinheiro público investido em alguém que não termina o curso. As novas tecnologias, igualmente, diminuíram os deslocamentos, principalmente pela disponibilidade de bancos de dados, favorecendo a redução do tempo de conclusão dos cursos. Tudo isso é realmente um sucesso, mas, por outro lado, há um problema seriíssimo, relacionado a um olhar homogêneo, a uma forma homogênea de avaliação, para áreas completamente heterogêneas. Há uma diversidade nas áreas que não é levada em conta.

- Nessa diversidade de áreas que não é levada em conta, como fica a pesquisa na área das ciências humanas?


- Caso não sejam criadas políticas públicas que garantam a igualdade de condições entre as áreas de conhecimento, o ideal republicano morrerá. Se não houver um cuidado dos organismos públicos para garantir que todas as áreas tenham um equânime aporte de recursos financeiros, vai predominar a perspectiva neodarwiniana. Os mais fortes, os produtivos, vão gritar mais alto, com seus produtos, resultados imediatos e terão mais facilidade para obter financiamento.

Vivemos uma lógica que alguns autores chamam de capitalismo acadêmico. A lei da selva, do mais forte, se instala. E ela migra para as ciências humanas. Por esse viés, quem precisa da filosofia, das ciências sociais?

- O governo se utilizada da necessidade de ampliação do ensino superior e da inclusão de mais brasileiros na universidade para legitimar medidas que só precarizam ainda mais a profissão docente e a qualidade do ensino. Quais as conseqüências disso?


- Resumidamente, diria que se houver inclusão social não precisará ser discutida a inclusão digital, por exemplo, porque uma está inserida na outra. Algo similar ocorre com a inclusão no ensino superior. Porém, enquanto predominar a lógica capitalista, a perspectiva será piramidal, ou seja, sempre teremos muitas pessoas sem acesso aos serviços mais básicos, como educação e saúde e menos pessoas com acesso.

A idéia de inclusão fortifica o discurso do governo enquanto a exclusão está na ordem do dia. O que acontece é que, ao invés de mudar a materialidade, o governo muda o discurso sobre a necessidade de ampliar o acesso ao ensino superior, ao proporcionar um ensino de qualidade questionável para formar indivíduos sob medida para as necessidades do mercado de trabalho. Poderíamos dizer que está sendo promovida uma "inclusão excludente", conforme tese da professora Acácia Kuenzer em artigo inserido no livro Capitalismo, Trabalho e Educação, publicado pela Editora Autores Associados.

1. Em um primeiro momento, a empresa encomenda à universidade os profissionais que ela precisa. Num segundo momento, a empresa cria o departamento de recursos humanos, onde começa a dar cursos de auto-ajuda, formar cursos pontuais. Num terceiro momento, cria escolas dentro do ambiente empresarial, para formar pessoas de acordo com suas necessidades. E o último estágio é o da educação ou universidade coorporativa, em que a empresa decide criar sua própria universidade.

Fonte: ANDES-SN

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey