Em 30 de agosto, o embaixador Dário Castro Alves encerrou nove anos de trabalho na tradução do russo para o português da obra prima de Alexandr Sergueivich Pushkin, Eugênio Onegin: Um romance em versos. O livro será brevemente lançado para o grande público brasileiro pela Editora Record.
A obra tem caráter pioneiro na literatura russa. Cabe ao livro ter vencido períodos caracterizados por vários títulos, como o de que a literatura russa estava ainda em estágio bárbaro, apresentando ao mundo uma criativa solução de linguagem nacional. De fato, é o próprio Dostoievski quem afirma que ninguém representou, ou representará, tão bem e tão poderosamente a vida russa como o fez Pushkin em sua obra.
Os leitores de língua portuguesa, que ainda não dispunham de uma tradução de Eugênio Onegin, romance na esteira do qual a literatura russa adquiriu seu grande estilo e sua grande forma, agora podem regozijar-se ao ler uma obra que desperta sentimentos, e que por isso mesmo jamais envelhecerá, apresentada em uma tradução de valor, digna e extremamente útil.
Prof. Dr. Adelto Gonçalves
Embaixador conclui a primeira tradução para o português do romance Eugênio Onegin, de A. S. Pushkin
Entrevista de Dário Moreira Castro Alves a Ângela Barros Leal Farias:
P: O que o motivou a realizar esse trabalho de tradução para o português da obra Eugênio Onegin, de Pushkin?
R: Na minha formação pesa um certo substrato de cultura russa, que se acentuou com minha permanência na Embaixada brasileira em Moscou, de 1962 a 1965. Era então minha mulher Dinah Silveira de Queiroz, escritora profissional, que mantinha um amplo relacionamento com escritores e artistas soviéticos de então. Ela achou que eu devia aprofundar minha sensibilidade pela vida e literatura da Rússia, procurando conhecer melhor as expressões literárias russas.
P: E porque Pushkin?
R: Porque notávamos que era um escritor clássico, que todos, sem exceção, todos na Rússia veneram, conhecem e sabem algo dele, exaltam sua personalidade. A presença de Pushkin na formação cultural do povo russo é ainda maior que Shakespeare na Inglaterra, ou que Camões em Portugal.
P: E porque Eugênio Onegin?
R: Essa é uma obra sem igual. Um personagem literário de fortíssima presença, tanto no povo de sua época como na posteridade. Tem um lugar cimeiro na minha cultura pessoal, é a obra mais conhecida de Pushkin e ainda não havia recebido uma tradução em português, embora houvesse em dezenas de outras línguas. Fixou-se em mim a idéia pushkiniana ainda na década dos 60. Dinah insistia muito para que eu me convertesse num escritor, ao que eu reagia dizendo ser, antes de tudo e sobretudo, um funcionário diplomático. Quando Dinah, gravemente doente, se preparava já para deixar esse mundo, comecei a aplicar suas idéias e seus pensamentos, e comecei a me preparar para escrever. Minha segunda mulher, Rina, foi também de imensa ajuda no meu esforço de me tornar um homem de letras, um escritor.
P: Pushkin é sua estréia na área literária?
R: Não. Minha estréia se deve a Eça de Queiroz. Notava eu que muitos e muitos brasileiros que passavam por Lisboa, onde eu servia como Embaixador, sabendo que eu tinha interesses em Eça de Queiroz me vinham perguntar onde se deram tais e tais cenas, presentes nos grandes romances de Eça Os Maias, O Primo Basílio, A tragédia da Rua das Flores, A Capital e outros. Perguntavam tudo, minuciosamente. Dinah então me assinalou que seria um tema interessante, considerando que Eça era uma personalidade viva na sensibilidade brasileira. Eça era Lisboa, e ninguém a decantou mais fortemente como escritor do que ele. Além do mais havia o lado propriamente brasileiro. O Brasil estava atrás de toda a vida lisboeta. Raspando-se um pouco as velhas paredes de Lisboa, se dá no Brasil. Isso é um fato.
P: O senhor escreveu então uma trilogia?
R: O primeiro foi Era Lisboa e chovia, um roteiro cultural, histórico, literário e sentimental construído a partir da obra de Eça de Queiroz. Modéstia à parte, trata-se de um livro não superado quanto ao tema. A longínqua explicação para o título vem de Alfredo Valadão, eciano fanático, que adorava explicar o sentido profundo, profundíssimo, de porque Eça escolhera falar de Lisboa. E naquele trecho de A capital, em que o grande autor registra a fase altamente irônica de que era Lisboa e chovia, queria dizer o seguinte: Fradique vinha de Paris, granfinérrima cidade das luzes, e chegava à suja estação de Santa Apolônia, em Lisboa, em lúgubre madrugada. Surge então a frase que ficou famosa, em que dizia além de ser Lisboa, ainda chovia. Era, pois, o fim...
P: E os outros dois volumes?
R: Era Porto e entardecia, listando todas as bebidas mencionadas por Eça, do absinto à zurrapa. E por fim Era Tormes e amanhecia, um completo dicionário gastronômico cultural, com o nascimento literário de Eça de Queiroz na região do D´Ouro.
P: E de Eça a Pushkin...
R: Exatamente. O amor pelos melhores padrões de escritores fez essa transição. Pushkin era o maior na literatura russa, como, em outros planos, era o maior da escritura portuguesa o nosso Eça.
P: Quais as dificuldades na tradução desse romance em verso?
R: Enormes. A intimidade com certas frases, certos conceitos, me escapava. Mas pedi socorro a grandes amigos russos, cultores de Pushkin, sobre o significado de determinadas expressões, a essência das palavras. Alguns consultores foram, em primeiríssimo lugar, Olga Ovtcharenko, do Instituto Gorki, e Marina Kosarik, da cátedra Camões na Universidade Lomonosov, de Moscou, além de tantos outros. Bons dicionários e boas combinações de instrumentos de pesquisa também colaboraram. Pelejei muito, mas acho que consegui algo, graças também aos três anos que passei em Moscou, que me trouxeram o interesse vivo em temas como a descrição da natureza física, abundante em Pushkin, a complexidade da alma russa, o estilo de vida do povo russo. Dinah dizia sempre que os regimes ficavam na periferia do ser humano. Todas as reações e maneira de ser do cidadão russo que conhecemos estavam, por exemplo, em Tchekov. Pouco importava se esse russo era do fim do século XIX ou se era russo dos tempos da administração por regime comunista.
P: Quanto tempo o senhor ocupou nesse trabalho?
R: Levei nove anos. Não posso dizer que todos maciçamente dedicados a Pushkin, mas era uma preocupação constante, um quase pesadelo. Para os travesseiros levava sempre notinhas, para fechar as rimas que faltavam. Com o tempo fui matando alguns truques e mistérios na produção, que é mais viável do que se pensa, mas com muito afinco, trabalho e consciência.
P: Qual sua expectativa para o livro?
R: O brasileiro do trópico entenderá perfeitamente o Pushkin de Onegin. Não tenho dúvidas disso. Os estudiosos e interessados na cultura russa, no Brasil, vão conhecer uma Rússia cheia de complexidade. Em muitas cenas os personagens vão e voltam, empacam, seguem à frente, raciocina, deixam um rastro de inquietação e indefinições. Por exemplo, as inquietações existenciais sentidas por Onegin após matar em duelo o amigo Vladimir Lenski, seu então futuro cunhado. Uma curiosidade: a morte de Lenski como que antecipa o verdadeiro duelo mortal contra D´Antès, no qual Pushkin iria perder a própria vida.
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