Miguel Urbano Rodrigues: Cumpridos os primeiros três meses na Casa Branca, Barack Obama continua em estado de graça. Sobre o jovem presidente negro chovem elogios.
Uma máquina de propaganda bem concebida conseguiu que a promoção do sucessor de George Bush adquirisse características inéditas. Não somente assumiu proporções mundiais como a maioria dos epígonos é sincera na apologia do novo herói americano, não se apercebendo de que o coro dos elogios é estimulado por uma engrenagem made in USA.
No auge de uma gigantesca crise do capitalismo, inseparável de uma crise de civilização, Obama é apresentado como o sucessor dos pais da Pátria do final do século XVIII, o líder providencial sobre cujos ombros caiu a missão de salvar a humanidade dos perigos que a ameaçam, tarefa que somente o seu país, os EUA, poderá liderar e concluir com êxito.
O quase endeusamento do salvador é acompanhado por uma ofensiva mediática paralela sobre as virtudes do exemplar chefe de família. A esposa e as filhas tornaram-se tema de reportagens apologéticas na TV, na Internet e na grande imprensa. Até o cão das meninas inspirou artigos que correm pelo mundo.
Essa poderosa orquestração promocional empurra o cidadão comum, de Washington a Tóquio, de Brasília ao Cairo para a conclusão de que, afinal, o destino da humanidade depende hoje muito mais da grandeza de um homem excepcional que do quefazer dos povos.
Desmontar essa campanha e chamar à realidade centenas de milhões de pessoas que por ela são confundidas é, creio, um dever dos intelectuais progressistas.
Do mito à realidade
Barack Obama é um homem inteligente, mais honesto e bem intencionado do que a quase totalidade dos presidentes que o precederam.
Acredito que há meia dúzia de anos não lhe passaria pela cabeça a ambição de chegar à Casa Branca. Foram as circunstâncias e o seu grande talento oratório na comunicação com as massas que contribuíram decisivamente para que esse mestiço, filho de um imigrante de Quénia, fosse eleito presidente dos EUA.
Um factor importante pesou na vitória tida por impossível quando nas primárias disputou a candidatura pelo Partido Democrata: a sua experiência como senador proporcionara-lhe um conhecimento aprofundado da sociedade estadunidense e do sentimento de aversão do americano médio pelas engrenagens apodrecidas do Poder, em Washington.
Esses trunfos, muito importantes, não bastam, porem para transformar quase de um dia para outro o ex senador pelo Illinois num estadista super dotado.
O apoio ostensivo do grande capital foi determinante para a eleição de Obama no contexto de uma crise do sistema mais complexa e profunda do que a iniciada com o crash de Wall Street em 1929.O mundo da Finança preferiu o politico que prometia mudar tudo ao republicano McCain, comprometido com a herança de Bush.
Os sacerdotes do dinheiro não são ingénuos.
Transcorridos três meses, o Presidente que popularizou os slogans «Sim, nós podemos!» e «Sim, é possível!», mudou muito pouca coisa.
Obama cultiva um populismo sem precedentes na Casa Branca.
O esboço de um grande futuro que ele ajudará a construir é uma constante no discurso retórico em que a ambição do projecto ganha credibilidade pelo tom humanizado do estadista pessoalmente desambicioso, inconformado com o sofrimento dos seus compatriotas pobres e decidido a materializar o velho sonho de uma paz perpetua na Terra, erradicando dela os flagelos do terrorismo e da guerra.
Mas, em vésperas de festejar os 100 dias, os actos do Presidente não correspondem às promessas e à esperança que suscitou.
No plano interno, na área estratégica da Economia, Obama formou um gabinete com alguns dos mais destacados cérebros que conceberam a desregulação do sistema financeiro dos anos 90, estopim da borbulha especulativa cujo estouro gerou o pânico no mundo do capital. Três dos colaboradores a quem tinha confiado postos-chave da Administração tiveram de renunciar por estarem envolvidos em escândalos. Outros, como Paul Volcker, Lawrence Summers e Timothy Geithner, não escondem uma fidelidade granítica ao neoliberalismo e às grandes transnacionais e bancos que o Estado se esforça por salvar da falência.
Afirmando que comparecia na Cimeira do G-20 sobretudo para ouvir e recuperar a confiança de velhos aliados, o Presidente Obama fez aprovar em Londres, no fundamental, a estratégia que a maioria dos Europeus, sobretudo Sarkozy e a chanceler Merkel recusavam.
Os 750 mil milhões atribuídos ao FMI e os 250 mil milhões de apoio a direitos especiais de saque, bem como os 100 mil milhões destinados ao Banco Mundial e a outros bancos confirmaram que a politica de socorro aos bancos e banqueiros corruptos, responsáveis pela crise, vai prosseguir, nela cabendo um papel importantíssimo à instituição financeira que comandou a imposição do neoliberalismo em escala mundial.
No tocante à política internacional, Obama, longe de trabalhar pela paz, não se desviou até agora da linha belicista da Administração anterior, traçada pelos neoconservadores bushianos.
Hillary Clinton, à frente do Departamento de Estado, está a desempenhar o papel que dela se poderia esperar. O seu sorriso permanente e o discurso recheado de promessas ocultam mal as suas posições de conservadora empenhada em aplicar com firmeza o conselho de Lampedusa no Il Gatopardo: mudar na aparência alguma coisa para que tudo fique, afinal, na mesma.
Não parece dar-se conta de que num mundo em crise nada hoje é estático e tudo está em movimento.
A política em relação à Palestina é, com retoques cosméticos, a mesma. As declarações de Obama quando, antes da eleição, visitou e elogiou Israel, não justificam a esperança de uma revisão profunda da aliança com o sionismo, não obstante o novo governo israelense, de extrema-direita, se negar a admitir a criação de um Estado Palestino. É inquietante que o seu chefe de Gabinete na Casa Branca, um dos chamados homens do Presidente mais influentes, seja Rahme Emanuel, um sionista fanático.
Quanto ao Iraque, Obama retoma a tese de Bush sobre o êxito da pacificação do país, situação que permitiria o regresso aos EUA de dezenas de milhares de soldados, de acordo com o calendário estabelecido. Sabe que mente e todas as semanas dezenas de pessoas morrem ali em acções de violência atribuídas sempre a organizações terroristas e à Al Qaeda, como se a Resistência não existisse. No Norte, em Mossul, a tendência é, aliás, para um agravamento da contestação.
Washington recusa-se a reconhecer que o Iraque é um país ocupado e vandalizado, com um governo fantoche.
Relativamente ao Irão, o discurso agressivo de Bush foi substituído por outro, de abertura ao diálogo. Mas o Presidente norte-americano defende a aplicação de novas sanções se o governo de Ahmadinejad não se submeter às suas exigências, isto é, a renunciar a um projecto que Teerão garante estar orientado para o aproveitamento da energia nuclear com fins exclusivamente pacíficos.
Afeganistao: estrategia perigosa numa guerra perdida
Na sua campanha para a Casa Branca, Obama já havia feito afirmações irresponsáveis sobre a guerra no Afeganistão. Eleito, retomou o tema com insistência, afirmando que vencer essa guerra seria um objectivo prioritário na sua politica internacional.
Não disponho de informações sobre qual dos conselheiros do Presidente é responsável pela sua obsessão afegã. Mas a adesão ao projecto de transformar em pólo estratégico na luta contra o terrorismo a guerra de agressão ao povo afegão, iniciada por Bush como represália absurda pelos atentados do 11 de Setembro, é reveladora das lacunas culturais de Obama.
Há poucos dias, o Presidente advertiu os europeus -ao pedir-lhes um maior envolvimento militar no Afeganistão, nomeadamente através do reforço das tropas de combate integradas na força da NATO que a luta contra o terrorismo era inseparável de um desfecho vitorioso naquela guerra distante num pais em que identificava, pela presença activa da Al Qaeda, a maior ameaça ao Ocidente civilizado, particularmente à Europa.
A resposta ao apelo não parece tê-lo satisfeito, por insuficiente.
Na sua opinião, Bin Laden, oculto algures nas áreas tribais do Paquistão, dirige do seu refúgio os talibans que controlam hoje extensas regiões no país.
Acontece que os EUA não se limitam já a combater os chamados «rebeldes» no território afegão. Os bombardeamentos de aldeias paquistanesas por aviões da USAF não tripulados tornaram-se rotineiros em operações responsáveis pela morte de muitos civis ali residentes.
O general Petraeus, comandante-chefe para toda a Região do Médio Oriente e Ásia Central, chegou, entretanto, algo tardiamente, à conclusão de que a guerra não pode ser vencida por meios exclusivamente militares.
O Pentágono e o Presidente foram informados de que a solução do problema passa pela abertura de negociações com um sector do inimigo terrorista.
O general identifica três grupos diferenciados entre os talibans. Um de fanáticos islamistas, minúsculo, talvez uns 10%, irredutível na sua decisão de combater os invasores; um segundo, maioritário, de gente que apoia a insurreição por ódio aos estrangeiros, mas neutralizável; um terceiro, a terça parte, recuperável. Petraeus sugere a abertura de negociações com essa facção, admitindo que, tal como ocorreu no Iraque com milhares de sunitas, esses talibans possam tornar-se futuros aliados. Essa tese conta com o apoio do presidente Karzai, ex-funcionário subalterno de uma companhia petrolífera norte-americana. O objectivo de estabilizar o país - da sua «democratização» já não se fala - exige o estimulo ao desenvolvimento económico, a reconstrução de cidades destruídas, o combate vitorioso à produção e exportação de ópio.
Tais metas são inatingíveis. Em primeiro lugar porque o dinheiro da ajuda internacional tem sido embolsado pela gente de Karzai. É esclarecedor que a produção da papoila do ópio tenha aumentado extraordinariamente a partir da ocupação americana.
Petraeus terá sido influenciado por um ex-oficial do exército australiano, hoje seu assessor influente. Esse obscuro militar, definido já por alguns media estadunidenses como um estratego genial, defende uma acção psicológica junto das populações para reconquistar a sua confiança. Quanto aos talibans vacilantes, sugere a sua compra para os fazer mudar de campo, transformando-os de de inimigos em aliados.
Li algures que Petraeus tem paixão pela História, mas não demonstra ter percebido que o ambicioso projecto de «pacificação» do seu colaborador australiano é afinal uma repetição daqueles que os generais Westmoreland, Challe e Spinola idearam para o Vietname, a Argélia e a Guine Bissau. Acontece que todos fracassaram.
Mas os factos confirmam que o Presidente identifica na escalada no Afeganistão um pilar da sua estratégia de combate mundial ao terrorismo. Segundo as agências noticiosas, aproximadamente 21 000 soldados vão ser transferidos do Iraque para o Afeganistão e o Presidente vai pedir ao Congresso mais 98 mil milhões de dólares para fin anciar e «vencer» a guerra.
Obama não terá disposto de tempo para estudar a história do país que foi alias berço de grandes civilizações cuja memória é transmitida por ruínas belíssimas que fazem do país um dos maiores museus arqueológicos naturais da humanidade.
O Presidente certamente desconhece que ao longo de 23 séculos, desde a chegada de Alexandre da Macedónia, todos os invasores do actual território do Afeganistão foram enfrentados com extraordinária coragem pelos habitantes, nomeadamente os antepassados dos pashtuns, a minoria mais numerosa num pais que continua a ser um mosaico de nacionalidades.
Os mongóis de Gengis Khan renunciaram a conquistar a Índia depois de sofrerem enormes perdas na travessia da cordilheira do Hindu Kush.
A Inglaterra imperial invadiu três vezes o país. Na primeira, em 1848, um exército de 14 000 homens foi totalmente destruído na retirada de Cabul para a fronteira. O único oficial sobrevivente, o Dr. Brydon, médico da expedição, chegou a Jalalabad montado numa mula para anunciar a catástrofe. Na segunda guerra, em 1878, uma brigada britânica de 4000 homens foi aniquilada pelo príncipe Ayub Khan na batalha de Maiwand, às portas de Kandahar. A terceira, em 1919, iniciada com um ataque afegão a guarnições da fronteira, findou quando Londres reconheceu a plena independência do país, submetido a um regime de protectorado.
Transcorrido mais de meio século, milhares de soldados soviéticos morreram em combate nas montanhas afegãs, na década de 80, durante o conflito que opôs a Revolução afegã às organizações de mujahedines, armadas e financiadas pelos EUA.
Uma constante na torrencial desinformaçao sobre a guerra no Afeganistão é a insistência em atribuir à Al Qaeda o comando da insurreição na qual os talibans do mullah Omar seriam a única organização guerrilheira que enfrenta as tropas de ocupação (da NATO e dos EUA).
Ora no Afeganistão o árabe, língua de Bin Laden e da maioria dos dirigentes da Al Qaeda, é praticamente desconhecido. Os dois idiomas oficiais são o dari (variedade do persa) e o pashto, ambos indo-europeus.
É falso também atribuir aos talibans todas as acções de combate aos ocupantes. Muitas tribos da fronteira, sobretudo os waziris, os momand, os shinwar, e outras, lutam por ódio ao invasor e não sob comando taliban. Nos confrontos com as tropas estrangeiras participam inclusive segundo notícias divulgadas na Suécia ex-dirigentes do Partido Democrático do Povo, na clandestinidade desde o fim da Revolução Afegã.
A derrota será o desfecho
O republicano Robert Gates, mantido por Obama à frente do Pentágono aprova obviamente com entusiasmo a escalada prevista para o Afeganistão. Hillary Clinton também.
Não surpreende que em Portugal, o ministro da Defesa, com o aval de Sócrates, tenha anunciado o reforço da participação militar portuguesa nas forças da NATO, afirmando com orgulho que ela serve os interesses do Estado.
À ignorância soma-se a irresponsabilidade socratiana.
Uma derrota humilhante espera os EUA no Afeganistão. O desfecho dessa guerra antecipadamente perdida será talvez, pelas suas consequências, mais grave do que a retirada do Vietname.
Semana a semana mais envolvido nas malhas da engrenagem que nos EUA controla o Poder sob o manto da Finança, o Presidente avança em múltiplas frentes para fracassos que tornarão cada vez mais distante o seu grande objectivo: superar a crise em que o capitalismo está atolado, meta imprescindível à manutenção da hegemonia mundial exercida pelo país.
Não ponho em causa o homem. Mas é inquietante que o Obama que anuncia romanticamente para um futuro remoto um planeta desnuclearizado, em paz perpétua, não se aperceba de que no exercício da Presidência está a negar, de concessão em concessão ao establishment, os compromissos assumidos com o seu povo e a dar continuidade a uma estratégia imperialista de dominação universal.
A decisão, tomada na semana passada, de arquivar os processos instaurados aos torcionários das Forças Armadas que no Iraque cometeram crimes hediondos, expressa uma nova e alarmante capitulação. Argumenta que esses militares agiram de «boa fé», cumprindo ordens superiores, na convicção de que serviam a Pátria.
Cabe recordar que o Tribunal de Nuremberga condenou à pena máxima oficiais generais nazis que em sua defesa invocaram precisamente esse argumento.
A apologia irracional do novo presidente dos EUA não pode apagar a realidade: a estratégia que desenvolve, longe de remover a ameaça à humanidade que o imperialismo estadunidense configura, dá-lhe continuidade.
Vila Nova de Gaia, 18 de Abril de 2009
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