Iraci del Nero da Costa
José Flávio Motta
Largo período da vida econômica da humanidade pode ser entendido, também, como a história do desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital. Esse desenvolvimento nada mais é que o processo do qual resulta a universalização das ditas formas. Mercadoria, dinheiro e capital, relações sociais que são, chegam à sua culminância, vale dizer, universalizam-se objetiva e absolutamente, com a emergência da mercadoria força de trabalho enquanto propriedade absoluta do trabalhador direto. Assim, pois, este último passa a dispor livremente -- porque juridicamente livre e despossuído de outros meios de subsistência -- dessa mercadoria, da qual é pleno proprietário, no âmbito de uma sociedade na qual todos são fixados como proprietários absolutos de suas mercadorias. Em suma, a emergência da mercadoria força de trabalho funda o modo de produção capitalista, possibilitando a transformação do trabalhador livre em assalariado, do dinheiro em capital industrial e do detentor dos meios de produção -- e/ou da capacidade de mobilizá-los, mediante a propriedade de dinheiro ou outros haveres -- em capitalista.
Dentre as inúmeras implicações do surgimento da mercadoria em questão, ocupamo-nos, alhures, dos atributos do capitalismo como forma superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana. [1] Agora, nossa atenção centra-se em algumas outras das mencionadas implicações: primeiramente, o movimento de autonomização, ou seja, de isolamento, do âmbito econômico; outrossim, o fenômeno da "coisificação" do homem, isto é, de sua total desumanização; e, por fim, em perfeita sintonia com ambos, a possibilidade que se concretiza, no plano das idéias, da definição da economia como ciência autônoma com objeto próprio e claramente delimitado e, mais ainda, o estabelecimento de uma determinada teoria -- a teoria neoclássica -- enquanto paradigma inegavelmente bem sucedido na descrição da realidade dada pelo modo de produção capitalista.
A autonomização do econômico decorre da mercantilização da força de trabalho e ambas definem-se nos quadros do capitalismo. De fato, como observa Lukács, "(...) en las sociedades pre-capitalistas las formas jurídicas tienen que penetrar constitutivamente en las relaciones económicas. En estas sociedades no hay categorías económicas puras -- categorías económicas son según Marx 'formas de existencia, determinaciones de la existencia' -- presentadas posteriormente en formas jurídicas, fundidas en el molde de la forma jurídica. Sino que las categorías económicas y las categorías jurídicas están materialmente, por su contenido, inseparablemente entrelazadas. (Piénsese en los ejemplos (...) de la renta de la tierra y el impuesto, la esclavitud, etc.). Dicho hegelianamente: la economía no há alcanzado tampoco objetivamente en esas sociedades el estadio del ser-para-sí, y por eso no es posible, en el seno de una tal sociedad, una posición a partir de la cual pueda hacerse consciente el fundamento económico de todas las relaciones sociales" (LUKÁCS, 1975, p. 62).
O exemplo do escravismo, aduzido por Lukács, é seminal ao propiciar-nos feliz contraponto ao binômio autonomização do econômico/mercantilização da força de trabalho. Nesse contexto, são pertinentes as considerações efetuadas por Castro, em sua análise do escravismo da época mercantilista: "No capitalismo, uma vez constituído o proletariado, a pressão surda das condições econômicas sela o poder de mando do capitalismo sobre o trabalhador. Caracteristicamente, no entanto, no escravismo moderno -- onde o escravo atua, 'portas adentro', como um proletário -- não há em princípio mecanismos socioeconômicos a determinar o seu comportamento. No capitalismo, mais uma vez, 'os agentes principais deste sistema de produção, o capital e o operário assalariado, não são, como tais, mais que encarnações, personificações do capital e do trabalho assalariado, determinados caracteres sociais que o processo social de produção imprime nos indivíduos ...' fazendo com que a história do proletariado tenda a correr pelos trilhos da história do capital. No escravismo aqui estudado, no entanto, um pelo menos dos 'agentes principais' não tem o seu caráter social efetivamente moldado pelo regime de produção e, conseqüentemente, não pode ser considerado como a encarnação de uma categoria econômico-social (...). Os escravos são fundamentalmente 'cativos' e se ajustam (bem ou mal) ao aparelho de produção de que tratamos, por uma combinação mais ou menos eficaz de violência, agrados, persuasão etc. Paradoxalmente, portanto, os escravos, que a tradição juridicista teima em chamar de 'coisa', impossibilitam a reificação das relações sociais - com o que fica definitivamente prejudicada qualquer tentativa no sentido de 'descobrir a lei econômica que preside o movimento' deste regime social" (CASTRO, 1980, p. 93-94).
As considerações de Castro lembram, ademais, os vínculos que se estabelecem entre a autonomização do econômico e a "coisificação" do homem, vínculos estes que se assentam, repisemos uma vez mais, na emergência da mercadoria força de trabalho, elemento fundante do modo de produção capitalista. Assim, no capitalismo, o trabalhador assalariado define-se como mero portador de relações sociais, no caso, a mercadoria em tela; correlatamente, o capitalista atua como personificação do capital. O homem, pois, desumaniza-se, deixa de estar presente, -- ou melhor, consubstancia-se numa presença ausente -- aliena-se. Agir como coisa e conformar-se a tal papel: esta a maneira de atuação efetiva do homem na forma hodierna de sociabilidade humana.
Ora, aí estão postas as condições para o surgimento da ciência econômica como algo dado historicamente. Seu início demanda a prévia mercantilização da força de trabalho, pois antes era impossível a própria emergência da ciência econômica como ramo específico do conhecimento. Seu objeto havia que se autonomizar. Como escreve Lukács, "tampoco es casual que la economía política no haya nacido como ciencia sustantiva sino en la sociedad capitalista. Y no es casual porque la sociedad capitalista, por su organización mercantil y del tráfico, há dado a la vida económica una peculiaridad tan autónoma, tan cerrada y tan basada en legalidades inmanentes, que en vano se buscará en las sociedades anteriores" (LUKÁCS, 1975, p. 98).
Por outro lado, se os homens agem como coisas, é preciso vê-los como mera coisa, isto é, de uma perspectiva positivista. Daí a economia neoclássica mostrar-se plenamente aparelhada para descrever tal homem. A esse conhecimento, como instrumento de entendimento e/ou manipulação, basta captar o comportamento dos agentes econômicos; para maximizar não é necessário saber porque o homem age mas, tão-somente, como ele se comportará tendo em vista esta ou aquela mudança nas variáveis econômicas. O caráter ideológico da teoria neoclássica reside no fato de pretender ser aplicável para sempre, e isto só será verdade se as condições dadas não forem mudadas pelo homem. Dessa forma, observamos que, nos limites do capitalismo, a aludida teoria, enquanto conhecimento que tenta captar o que é, não é passível de reparos, à exceção dos decorrentes de critérios internos de cientificidade. Isto porque ela espelha fielmente, presente o seu escopo, o comportamento do homem no contexto de sua absoluta desumanização.
Em suma, a crítica não pode ser dirigida à teoria neoclássica, mas à sociedade - ao capital - da qual ela é mera descrição. Negar a teoria neoclássica nada significa, pois ela só será negada de fato quando aquela realidade for suprimida. Por conseguinte, a tarefa de negar os neoclássicos não caberá aos economistas ou filósofos, mas ao cidadão. A crítica será feita mediante a ação política e não pela via do discurso teórico. A este cabe, justamente, mostrar que os neoclássicos estão certos ao espelharem uma realidade que, esta sim, tem de ser mudada se quisermos viver -- criar -- um mundo humano que possa se contrapor -- fazer o reencontro do homem com sua humanidade -- à assim chamada sociabilidade natural, da qual o capitalismo é a forma superior.
Referências Bibliográficas
CASTRO, Antônio Barros de. A economia política, o capitalismo e a escravidão. In: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 67-107. (Coleção História Brasileira, 5).
LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Grijalbo, 1975. (Instrumentos, 1)
MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início da história. Informações Fipe. São Paulo: FIPE, n. 172, p. 20-23, janeiro/1995a.
MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início da história: um adendo. Informações Fipe. São Paulo: FIPE, n. 174, p. 21-23, março/1995b.
[1] Ver MOTTA & COSTA (1995a e 1995b).
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