A revista "LOUD!" decidiu dedicar umas dezenas de edições aos discos mais emblemáticos do submundo musical português, do industrial ao punk passando pelo hardcore e pelas várias gradações - das mais suaves às mais extremas - do heavy metal passando até a por um cheirinho muito ligeiro de Oi!, pouco ficou de fora deste volume compilado e dado à estampa em Maio deste ano, eis "Quadro de Honra" (368pp.; 16,90€; Saída de Emergência, 2016).
Flávio Gonçalves
Admito que foi um tanto ou quanto complicado manter-me neutro quanto aos conteúdos deste livro, não só o volume inclui entrevistas com muitos dos ídolos da minha adolescência e juventude mas também com muitos rostos conhecidos cujo rastro o tempo me fez perder e até alguns amigos que já partiram deste mundo (caso de João Ribas, dos Censurados), o cérebro invadiu-se com toda uma série de locais que já não existem, do Centro Comercial Portugália até ao V Imperium, do Boca do Inferno ao Limbo, do Meia Nota ao Jürgens, num Bairro Alto alternativo, rebelde e deliciosamente barulhento que já só existe na memória daqueles que, como eu, lá andaram a saltar, a pogar e a cantar os refrões.
Mais, fez-me recordar todo um frenesim de trocas de fanzines, folhas volante (a imortal "Thrash Publishing" do Mário Lino) e cassetes de fita, selos dos CTT cobertos com cola ou envernizados para serem eternamente reutilizados, os catálogos da Carbono e da Guardians Of Metal que nos chegavam (parecia) do outro lado do mundo quando ainda residia na minha cidade natal da Horta (Faial, Açores), a leitura quase devocional das revistas "Roadie Crew" e "Rock Brigade", o nascimento e morte da "Riff" (por uma questão geracional, o meu irmão mais novo lia a "LOUD!") e a alemã "Rock Hard", que se utilizava essencialmente para recortar fotos das bandas favoritas com as quais se cobriam os cadernos e capas da escola, os discos comprados a meias com colegas de liceu, as encomendas conjuntas para poupar nos portes e os anúncios dos X-Acto no "Blitz", todo um passado que a geração da Internet, do iTunes e do Facebook dificilmente entenderá ou julgará nunca ter existido.
O livro conta com uma introdução a cargo de José Luís Peixoto, dois textos de Fernando Ribeiro, recordando as gravações e o rescaldo de "Wolfheart" e "Irreligious", que catapultaram os Moonspell para uma carreira no estrangeiro que ainda perdura, e 36 entrevistas efectuadas por Ricardo S. Amorim, José Miguel Rodrigues, Nelson Santos, José Carlos Santos, Nuno Costa, Ricardo Agostinho e José Almeida Ribeiro, tudo em bom português (ou seja, Sem Acordo Ortográfico, uma deliciosa anomalia por parte da Saída de Emergência). Deste underground notei apenas a ausência de duas sonoridades: o rockabilly (eu incluiria Capitão Fantasma e Lucky Duckies) e o neo-folk (Sangre Cavallum? Karnnos?), terão ficado para a promessa vaga de um segundo volume?
Satisfez-me encontrar os açorianos Morbid Death (teria apostado que se tinham esquecido deles, mas tal não sucedeu) e José Cid com o seu rock progressivo em "10.000 Anos Depois Entre Vênus e Marte", a presença do hardcore - principalmente o vegetariano - parece-me um tanto ou quanto desproporcional, mas gostei de ouvir em discurso directo a realidade dos poucos submundos que não testemunhei em primeira mão. No Oi!, temos os sempre eternos e incontornáveis Mata-Ratos, o punk está entregue aos Censurados e aos Peste & Sida e o prato principal é heavy metal, muito heavy metal, death, grindcore, black, industrial, épico, neste campo o underground nacional dá cartas.
Para alguém que de algum modo viveu o "boom" do underground português na segunda década de 90 e primórdios do século XXI, este livro irá fazer com que vão à cave ou ao sótão sacudir o pó de discos e CDs aos quais há muito não voltavam - eu próprio, nos dias que demorei a digerir toda a nostalgia que esta monumental obra me causou, acabei por ouvir todos os álbuns de Heavenwood, a começar por "Swallow", uma vez que a compra deste me fez recordar a minha primeira ida a Ponta Delgada (São Miguel), conhecer pessoalmente Mário Lino, uma ida à ilha de Santa Maria onde foi a banda sonora de uma excursão do Grupo de Jovens do Capelo e ainda a ida a um concerto de Morbid Death. Estou certo que todos nós, entre os 30 e os 50 anos a avaliar pelo meu regresso ao underground aquando da vinda de Obituary ao agora incontornável RCA Club, iremos recordar vários momentos à medida que percorremos as quase quarenta entrevistas e álbuns reunidos neste volume.
Para todos aqueles que não puderam testemunhar em primeira mão este submundo vivo que foi o eclodir das sonoridades mais extremas em Portugal a partir de 1993, têm aqui um autêntico documentário escrito para o que vivemos (sim, até eu tive uma banda de garagem, cabelos a meio das costas, muita roupa negra e pulseiras com espigões, por sorte a típica humidade açoriana parece ter varrido todos os indícios desse período) e estou certo de que hoje, algures, pulsa ainda um underground que vale a pena conhecer.
Para os nostálgicos, para os estudiosos e para os curiosos, neste volume encontram entrevistas com as bandas Mão Morta, Thormenthor, Ramp, Bizarra Locomotiva, Twentyinchburial, Grog, Desire, Sacred Sin, Evisceration, Heavenwood, Decayed, Genocide, Sirius, Shrine, Inhuman, X-Acto, Tarantula, Mata-Ratos, Disaffected, Blacksunrise, Holocausto Canibal, Censurados, Men Eater, Exiled, Gangrena, José Cid, In Solitude, Peste & Sida, Morbid Death, In Tha Umbra, The Temple, If Lucy Fell, New Winds, W.C. Noise, Corpus Christii e Process Of Guilt. Dica: quase todas elas anunciam o relançamento dos seus álbuns mais populares.
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