Narciso, o narcisista, Eco, a ninfa ninfomaníaca e Dionísio, o dionisíaco

Narciso, o narcisista, Eco, a ninfa ninfomaníaca e Dionísio, o dionisíaco

Quando Narciso nasceu, Tirésias, o adivinho de plantão, vaticinou:

- Esse mitológico moleque vai viver pra lá de muitos anos.

Cefiso e Liríope, pais de Narciso, ficaram contentes, visto que aquela criança não seria mais um a engrossar o índice de mortalidade infantil da antiga Grécia. O mago, porém, advertiu:

- Só tem um problema?

- Problema?! - perguntou espantado Cefiso, afinal, pretendia que seu filho fosse saudável e viesse a se tornar um atleta e participar das olimpíadas de Atenas, como ele, o pai, nunca havia participado.

por Fernando Soares Campos

- Que problema?! - espantada, quis saber Liríope, afinal, as mães cuidam das gripes, do sarampo, da catapora, da caxumba e das lombrigas dos filhos.

Mas Tirésias os tranquilizou:

- Não se preocupem, mesmo sabendo que Narciso será um jovem anormal.

- Anormal?! - animou-se o pai, pois naquela época era normal que os rapazes normais se interessassem mais por jovens loiros que pelos louros das olimpíadas.

- O que você quer dizer com "anormal"? - quis saber a mãe, pois naquela época era anormal os filhos desenvolveram fortes inclinações edipianas.

Tirésias rodopiou pela sala, com gestos afetados, com uma das munhecas apoiada na cintura e falando como se estivesse incorporado por uma entidade espiritual.

- Narciso será tão belo, mas tão gato, tão lindo, tão fofo...

- Para com isso, viadopolus! - impacientou-se o pai. - Só quero que meu filho não seja tão maricopolus quanto você!

- Nem taradopolus, como o filho da Jocasta - completou a mãe.

O adivinho esclareceu:

- A questão é que, para viver pra lá de muitos anos, Narcisinho não poderá ver sua própria imagem - advertiu Tirésias. - Porque, de tão maravilhoso, tão belo, tão pão (naquela época ainda se usava essa gíria), diante de tanta beleza, poderá se autoapaixonar, e, bem autodotado como é, vai poder até se autofornicar - enfatizou com o reflexivo "se".

A Mitologia não registra, mas não há dúvida de que Cefiso e Liríope tomaram cuidados incomuns quando criaram Narciso. Provavelmente, jamais lhe serviram líquidos em copo, prato, tigela ou qualquer vasilha que pudesse produzir uma superfície espelhante. Também não podiam ter em casa nenhum objeto polido, fosse metálico, cerâmico ou mesmo de madeira envernizada. Cristais, nem pensar! Só não se preocuparam com objetos de plástico porque naquela época essa matéria ainda não havia sido criada. O urinol de Narcisinho foi substituído por uma caixinha de madeira com areia, afinal, o menino era um gato. Todas as providências foram tomadas para evitar que o jovem Narciso viesse a contemplar sua própria imagem; senão, a Mitologia e a Psicanálise viriam a confundir o narcisista Narciso com o onanista Onan.

Certo dia, Cefiso e Liríope se descuidaram, e o jovem Narcisito saiu sozinho de casa e foi dar num bosque cheio de ninfas. Foi nesse dia que ele se encontrou com Eco, a ninfa que tinha a mania de repetir os últimos sons que ouvia. Eco ficou encantada com beleza de Narciso, de tal forma que foi tomada de um furor uterino, o tipo de tesão que viria a ser chamado de ninfomania.

Eco aproximou-se do rapaz e, extasiada, arregalou os olhos, a fim de contemplar toda aquela beleza. Os dois estavam assim, cara a cara, olhos nos olhos. Narciso parecia igualmente deslumbrado. Como Eco só podia repetir os últimos sons que ouvia, naquele momento ela apenas pensou: "Sou realmente irresistível!". Porém, pela primeira vez, Narciso vira sua própria imagem: ela se refletia nos olhos arregalados da ninfa. Foi aí que o autoencantado Narciso falou:

- O ser mais belo de todo o universo sou eu!

- ...sou eu! sou eu!- repetiu Eco.

- Não, sua convencida! SOU EU! - explodiu Narciso, batendo no peito.

- ...SOU EU! SOU EU!

- Você?! Ah, não FODE! - berrou.

- ...FODE! FODE! FODE! - repetia Eco, enquanto levantava a saia.

Horrorizado com aquela oferecida, Narciso saiu disparado e gritando:

- Não vem, que não tem!

- ...tem! tem! tem!

- Você tá louca!

- ...ocê tá louca! ...ocê tá louca! ...ocê tá louca!

Narciso desapareceu numa trilha de volta para casa.

Envergonhada por ter sido esnobada, Eco perdeu o apetite e definhou. Aconselhada por Diana, resolveu que seria modelo nas passarelas do Olimpo. Então, para atingir o padrão exigido, parou de comer. Emagreceu, emagreceu... até que sobrou apenas as partes mais sólidas. Finalmente, Eco transformou-se numa rocha. Mas não perdeu o hábito de repetir o final dos sons que ouvia. As rochas vizinhas gostaram da brincadeira e passaram a fazer o mesmo. A moda se espalhou pelos Pirineus, Himalaia, Andes, até chegar à garagem nos subsolos de prédios.

Narciso resolveu morar no bosque, onde achava que todos os outros seres, por lhe parecerem horríveis, realçariam sua beleza. Nisso se inspirou Caetano, que disse: "É que Narciso acha feio o que não é espelho", e trocou Salvador por Sampa, onde sua própria feiura não seria notada em meio à "feia fumaça que sobe apagando as estrelas".

Em noites de tempestade, Narciso vagava pelos campos, cantando e dançando na chuva. Os clarões dos relâmpagos sugeriamflashs das câmeras fotográficas de centenas de paparazzi em busca de flagrantes de sua vida noturna. E os trovões equivaliam ao que hoje chamam de tecno music, mesmo considerando que os ribombos da natureza soam bem mais harmoniosos.

Numa daquelas noites, Narciso encontrou-se com Dionísio, um vendedor de vinho da adega do seu próprio pai, Zeus (na Grécia é comum as pessoas sofrerem de "língua presa", por isso chamam "Deus" de "Zeus"). Então, Dionísio (Zionísio, para os gregos) fez Narciso experimentar uma garrafa de cada safra, desde as produções mais antigas até as preciosidades que hoje só se encontram em Ciudad del Este, no Paraguai. Narciso tomou um porre e, como se dizia em grego naquela época, entrou em ékstasis, ou, como ainda hoje se diz por lá, ficou ekstatikós.

Quando o dia amanheceu, Narciso ainda estava meio chapado, o fígado bombardeado lhe provocava uma homérica dor de cabeça e uma sede odisseica. Narciso saiu correndo pelos campos, suplicando:

- Água! Água!

O boquisseco Narciso avistou uma lagoa; porém, quando se aproximou, eis que, estupefato, viu sua própria imagem refletida nas águas cristalinas. Entretanto, contrariando a versão tradicional, Narciso não imaginou que estava vendo a si próprio: pensou que aquele lá fosse Dionísio, o jovem vendedor de vinho, com quem bebera, dançara, comera e por quem fora comido a noite toda. Narciso imaginou que seu mitológico companheiro também viera afogar a ressaca e teria aproveitado para dar uma refrescada. Apaixonado pelo filho de Zeus, Narciso, num salto olímpico, atirou-se em seus braços, esquecendo-se de tudo e de todos, inclusive de que não sabia nadar.

Moral mitológica lógica: Se Narciso apaixonou-se por Dionísio, hoje a estátua do deus do vinho está aí mesmo para provar que tamanho não é documento.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey