Vivemos, porque devemos

Hoje, está na moda se dizer que certos procedimentos se naturalizaram, isso significando que, determinadas coisas ou procedimentos, que até certo momento das nossas vidas não faziam parte dos nossos hábitos, nos são impostos de uma maneira tão drástica, que passamos considerá-los, depois de algum tempo, como algo que sempre existiu em nossas vidas.

Um exemplo até certo ponto prosaico dessa naturalização seria o uso do celular, hoje um objeto tão natural para as pessoas, que parece impossível que tenhamos vivido sem ele até alguns anos atrás.
Isso, sem falar na internet.

Para o filósofo e sociólogo italiano Maurizio Lazzarato (62 anos) a forma mais dramática de naturalização que atinge o moderno homem ocidental é o crédito e em decorrência dele, a dívida,

Lazzarato vai buscar justificativa para esse conceito inclusive em Nietzche, quando este diz "o que formou o homem civilizado não é o trabalho, nem o intercâmbio, e sim, a dívida. Porque a dívida constrói um homem que pode prometer, e pode prometer enquanto constrói uma memória: eu vou pagar porque lembro da minha dívida".

A importância do que defende Lazzarato é que essa dependência do individuo/consumidor a determinados objetos de desejo (construídos por diferentes dispositivos de poder como a publicidade e o marketing) pode ser ampliada para as relações mais amplas, como classes sociais e países, se transformando no esteio do sistema capitalismo.

"O funcionamento mundial das finanças, dispositivo central do capitalismo, requer a generalização do crédito. Há um século, o crédito era para as empresas. As pessoas viviam da renda de seu trabalho. Hoje, todos podem ter crédito. Nos Estados Unidos há crédito para consumo, educação. Se alguém quer estudar deve endividar-se, obter um crédito. E isto organiza a subjetividade. Um crédito é uma promessa: eu vou pagar. Em 10, 20 anos, vou pagar este crédito. Como se pode assegurar que o crédito será respeitado todo esse tempo? Em nível legal, mas também em nível subjetivo, se constroem mecanismos para garantir que a promessa se cumpra",

Luiz Belluzzo disse recentemente, em palestra no seminário sobre os 100 anos da revolução russa, em Porto Alegre, que o sistema capitalista só se sustenta hoje por causa da existência do crédito, que multiplica o número de consumidores, evitando uma quebra do sistema, que continua produzindo para consumidores que ainda precisam ser criados.

O sujeito fica tomado pela dívida. Toda sua vida vai estar condicionada pela dívida. Se você tem uma dívida de 30 anos, as condições e os limites de sua vida vão estar organizados por esse crédito.
As pessoas aceitam como naturais o fato de que devem construir sua vida devolvendo o que recebem pelo seu trabalho, mês a mês, com o devido juro e correção monetária, para a classe dominante que produz os objetos de consumo.

Para Lazzarato, essa não é apenas uma questão objetiva que se resolve de forma racional. O consumidor é agente e vitima desse processo.

"Para que algo se venda, deve-se construí-lo como objeto de desejo. Quando você o compra, além de pôr dinheiro, se empobrece subjetivamente. Porque há uma "padronização" da subjetividade. Todo mundo deve desejar o mesmo para comprá-lo. Para fazer aparência de individualização, se agrega algum detalhe personalizado. Junto com o empobrecimento econômico, há um empobrecimento subjetivo".
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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