Adelto Gonçalves (*)
I
Responda depressa: o que os poetas e os juristas têm mais em comum? Antes que seja necessário ao leitor consultar dicionários ou tratados de retórica, eis aqui a resposta: respondem sempre à letra. Ou devem responder sempre que tenham oportunidade, embora a resposta, às vezes, possa custar dias de calabouço, tortura ou desaparecimento no mar. Foi assim até há não pouco tempo, embora haja hoje em dia quem diga que a ditadura que vivemos de 1964 a 1985 tenha sido branda, talvez porque não tenham sido os seus testículos e unhas que foram arrancados.
A que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do Manual Anti-Tiranos: Retórica, Poder e Literatura, que Maria Luísa Malato, professora doutora associada do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, acaba de publicar pela Livraria do Advogado Editora, de Porto Alegre, em sua coleção Direito & Arte. Ali se lê que, diante da palavra abusiva, ainda que a da lei, tanto o poeta como o jurista sempre pensam na possibilidade de responder com a palavra, ainda que subversiva.
Diz a autora: tanto um como outro sabem que, levada aos seus limites, a interpretação acaba por conduzir quer à sua negação quer à sua verdade mais profunda. Para ambos, o sentido do texto pode ancorar-se sob alçada de uma lei arbitrária, sob uma autoridade duvidosa ou um poder corrupto. Ou furtar-se a essa alçada para de fora a contestar. Nem o poeta nem o jurista se acomodam à univocidade da norma e, por isso, ambos incomodam, acrescenta.
É por isso que nos decepcionamos quando magistrados não exibem a compostura que o cargo exige. E se deixam levar pelos holofotes da mídia ou pela vaidade de um efêmero cargo no poder executivo, em vez de se recolherem à doce e anônima aposentadoria. Foi o que boa parte da sociedade brasileira ao menos aquela que pensa sentiu quando há 20 anos um supremo juiz eleitoral, após ter presidido as primeiras eleições livres do País depois da duas décadas de regime autoritário civil-militar, deixou-se abater pelo laço do inimigo ao aceitar um cargo de ministro no novo governo. Ficou marcado para sempre.
II
Especialista no século XVIII português, Maria Luísa Malato é autora de obras fundamentais sobre aquele período da história lusa, como Manuel de Figueiredo: uma perspectiva do neoclassicismo português -1745-1777 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995), biografia do teatrólogo Manuel de Figueiredo (1725-1801), Por acazo hum viajante... a vida e a obra de Catarina de Lencastre 1ª Viscondessa de Balsemão 1749-1824 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008), História da literatura europeia: uma introdução aos estudos literários (Lisboa: Quid Juris, 2008) e da edição crítica da Obra Literária (poesia) de José Anastácio da Cunha (1744-1787), em co-autoria com a professora Cristina Alexandra de Marinho, que saiu em dois volumes (com inéditos do autor) pela editora Campo das Letras, do Porto (v.1, 2001; v. 2, 2006).
A professora utiliza seu vasto conhecimento da época para mostrar que entre a Literatura, o Direito e a Retórica se pode estabelecer muitas pontes e uma fácil cumplicidade de resistência à autoridade da força bruta, física e desmesurada. No Manual que preparou alinham-se histórias exemplares de combate às vezes, silencioso da liberdade contra a tirania, da memória contra o esquecimento.
É o que está por trás, por exemplo, da fundação de academias científicas e literárias no século XVIII, ainda que em tempos de tirania explícita. A academia tornou-se uma representação da Arcádia em que os acadêmicos faziam de conta que eram pastores fisicamente ociosos e mentalmente ativos , exercitando-se naquela poesia primordial que era bucólica, diz a autora. Para ter o rei ao seu lado que à época do absolutismo era sempre um tirano , os pastores tratavam de imaginá-lo também um pastor arcádico e um mecenas esclarecido. Mais: um monarca iluminado, sábio em suas decisões, enérgico na defesa de seus súditos e observador de sua natural liberdade.
Diz a investigadora que a presença da agricultura (proximidade e reciprocidade da natureza) na poesia arcádica serve para valorizar a ação política não despótica, mas que deriva de uma reciprocidade entre rei e súditos.
III
Segundo a autora, é importante para o espírito utópico da academia a crença na imortalidade da poesia. A imortalidade é naturalmente a fama a que todo poeta (ou literato) aspira, ou seja, a glória que fica, eleva, honra e consola, de que dizia Machado de Assis (1839-1908). E que também tem o nome de posteridade, que, no fundo, é uma utopia. Disse, certa vez, Bocage (1765-1805) num poema: (...) Posteridade, és minha!. É o desejo utópico de vencer a morte, o tempo, a História e tudo o que ela esquece ou corrompe.
Por isso, diz a autora, o poeta torna-se um filósofo, que observa e compreende o mundo com o olhar: O Pastor encontra-se próximo da Natureza e, ainda mais do que o Agricultor (que planta, colhe, poda, enxerta), molda-se passivamente a ela, deixando que ela siga o seu curso. Guia e protege o rebanho, mas deixa-o freqüentemente em liberdade para que a natureza cumpra os seus ritmos. É sábio, porque observa e não age.
IV
Afirma Maria Luísa que a tirania coloca ao poeta e ao jurista problemas semelhantes. Afinal, a tirania não gosta da palavra e aspira à paz dos cemitérios. Os tiranos só conhecem o argumento de sua força e àqueles que não concordam com isso só restam adesão servil e silêncio. Por isso, aqueles que serviram aos tiranos têm vergonha do papel que desempenharam e, mais tarde, quando os tiranos já estão mortos, procuram reescrever a história. É um pouco dessa luta que hoje se trava no Brasil. De um lado, os ex-colaboracionistas e muitos de seus descendentes que usufruem o que aqueles amealharam sabe-se lá como --; e de outro, os remanescentes da luta política que, hoje, obviamente, já não são tão idealistas como naquele tempo.
Nada disso, porém, justifica que, ao comparar o regime militar brasileiro às ditaduras de Chile, Argentina e Uruguai, conclua-se que a verde-amarela tenha sido menos violenta porque os desaparecidos foram em número bem inferior. Como se a ignomínia pudesse se resumir a uma questão de estatística. Por esse critério, é possível imaginar que, em vez de seis milhões, tivessem sido três milhões os eliminados pela insânia hitlerista o Holocausto não seria o Holocausto. E as barbaridades que vemos, por exemplo, nos filmes da época que se exibem no Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém, como tratores atirando corpos a fossas, tenham sido inventados por alguma mente tenebrosa.
Diz a autora que a tirania se confunde muitas vezes com o amor. E teria sido por isso que não poucos tiranos foram amados e louvados por multidões. Mas, hoje, ainda bem, parece que já não há espaço para esse tipo de tirano caricato. As tiranias de hoje são mais tecnológicas e menos ideológicas.
Enfim, este Manual Anti-Tiranos permite muitas ilações e nos ajuda a compreender e descobrir tiranos por todos os lados, até mesmo aqueles que carregamos dentro de nós mesmos e que estão apenas à espreita para aflorar diante da menor contrariedade. Aprender a domar estes tiranos internos, rindo de nós próprios, é o melhor caminho para quem aspira a viver em paz com o seu semelhante. Até porque, como nos ensina a autora, o maior perigo para os que atacam os tiranos é acabar por ser como eles. Quantos não conhecemos que acabaram assim?
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MANUAL ANTI-TIRANOS: RETÓRICA, PODER E LITERATURA, de Maria Luísa Malato. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 132 págs., 2009.
E-mail: [email protected]
Site: doadvogado.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
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