Porque elas temem reconhecer anorexia?

Diante de uma morte estúpida e aparentemente evitável, como a da modelo Ana Carolina Reston, de 21 anos, que foi vitimada pela anorexia e chocou o mundo  nesta semana, a reação humana básica consiste em pergunta.  Porque milhões de pessoas (muitas das quais adolescentes e jovens como Ana Carolina) continuam temem   reconhecer a doença?

 A anorexia é a doença ainda mal-compreendida pelos cientistas, e suas causas provavelmente envolvem muitos fatores atuando em conjunto.

Mas, por sua semelhança fundamental com os outros comportamentos  como alcoolismo e narcomania  o problema é um lembrete incômodo de que os nossos corpos e as nossas mentes têm uma história antiga. E que às vezes há um descompasso trágico entre essa história e a vida que levamos hoje. O que a teoria da evolução tem a ver com isso tudo? Talvez um bocado.

O conceito-chave aqui é conhecido como costly signalling (sinalização custosa), e foi elaborado pela primeira vez pelo biólogo israelense Amotz Zahavi nos anos 1970. Alguma forma de sinalização custosa parece estar envolvida em muitas interações sociais dos vertebrados, principalmente as que têm a ver com a busca por parceiros sexuais ou a definição de status dentro do grupo.


Esse sistema aparentemente bizarro surgiu de uma necessidade bem real: como é que um animal pode mostrar, de forma simples e rápida, que é um parceiro sexual de primeira categoria, ou vigoroso o suficiente para mandar no bando? Um dos jeitos de resolver isso seria exibir uma característica ou comportamento necessariamente custoso, um verdadeiro fardo, que comprovasse que o organismo do bicho em questão tem recursos para esbanjar, e portanto ele não teria a menor dificuldade para criar bebês ou comandar a manada/cardume/alcatéia/etc. É como se o indivíduo gritasse: sou tão durão, e tenho genes tão bons, que consigo me dar bem até com essa pedra constante no meu sapato.


No caso da relação entre os sexos, um dos exemplos mais exagerados é a plumagem barroca dos machos de ave-do-paraíso, pássaros que habitam o Sudeste Asiático. As caudas com mais de um metro e as estranhas penas compridas nascendo das sobrancelhas dos bichos exigem uma energia danada para crescer, tendem a ficar enganchadas em tudo quanto é galho na mata e chamam a atenção dos predadores. As fêmeas, contudo, adoram.


Essa, aliás, é outra característica importante desse tipo de sinalização, principalmente quando ela serve de combustível para a seleção sexual, ou seja, a disputa por parceiros: fora a indicação de "esbanjamento", a maneira como ela se manifesta é totalmente arbitrária e varia de espécie para espécie.


Basta que as fêmeas, de alguma forma, fiquem excitadas só de pensar num rabo de 1 metro, para que os machos tenham um incentivo evolutivo para se tornar cada vez mais rabudos (afinal, se tiverem uma cauda portentosa, ficam mais perto de deixar descendência numerosa). O mesmo vale para características que pareçam alardear liderança - um animal de bom status no bando normalmente tem mais chance de ter uma prole grande e saudável.


Multiplique isso por mil gerações, e o que você tem é uma corrida armamentista, com fêmeas valorizando cada vez mais o sinal custoso e machos fazendo de tudo para exibi-lo, e vice-versa.
O biogeógrafo Jared Diamond, autor de "The Third Chimpanzee" (inédito no Brasil), sugeriu aplicar esse quadro a comportamentos humanos como consumo de álcool e drogas, dirigir em alta velocidade e até pular de bungee-jump. Pessoas alcóolatras na verdade têm problemas de desempenho sexual, mas por que a imagem de uma mulher ou um homem tomando uma taça de vinho parece algo sexy? De novo, parece estar em ação o mecanismo: sou tão sexy/poderoso/saudável que nem essa bebida tóxica me atinge.


Agora, imagine por um momento a interação desastrosa entre esse sistema de sinalização, inconsciente e provavelmente enraizado nos nossos comportamentos sociais básicos, e um padrão cultural do belo que faz da magreza o ponto alto da desejabilidade.


Leve em consideração também que, num mundo extremamente competitivo como é o da moda, o status talvez seja uma função direta de quão custosa é a sinalização entre as jovens fêmeas, forçadas a comer um prato de salada por dia, e nada mais. É o mecanismo poderoso e imprevisível da cultura humana acelerando essa corrida armamentista até a velocidade da luz.


É preciso admitir desde já que muitos outros fatores podem estar em jogo. É bastante provável que a anorexia e a bulimia tenham um forte componente neurológico, funcionando como problemas cerebrais que precisam de um "gatilho" ambiental para se manifestar.


Acima de tudo, porém, nossa consciência, inteligência e vontade nos dão menos brecha para sermos simples prisioneiros da nossa história evolutiva. O mundo às vezes doentio da moda precisa ver que não há sinalização mais clara de aptidão do que continuar vivo e saudável.

 Reinaldo José Lopes

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Author`s name Lulko Luba