A chegada de Vladimir Putin a Portugal trouxe consigo uma vaga de equívocos acerca de como se deve governar democraticamente. Das esclarecidas mentes europeias esquecendo-se da forma como impõem a Europeização às nações saíram diversos comentários acerca do cariz ditatorial do Presidente da Rússia, mas apenas Sócrates foi sincero: admite as semelhanças e a amizade entre ambos.
Desde sempre que a Europa Ocidental tem uma visão míope da política interna dos outros países. Desde sempre que essa visão é fruto, não só da falta de vontade em usar óculos graduados para compreender os países não-europeus, como também de uma arrogância mental que moldará, agora e sempre, uma visão eurocêntrica da diplomacia e do Mundo. A visita de Putin é o mote perfeito para as elites europeias, por sinal analfabetas, darem lições de moral aos russos mas também para se reflectir um pouco sobre o que nós pensamos de nós mesmos. Da Europa.
Assim que Putin acordou para se vestir, no dia em que viajou para Portugal, os representantes europeus que estiveram presentes no Tratado de Lisboa esfregavam já as mãos de contentamento: teriam uma oportunidade para ensinar alguém a governar democraticamente. Mas ainda estava fresca a notícia da assinatura de um tratado europeu que fazia do poder dos países pequenos na União Europeia (UE) uma anedota face à orquestra política de Bruxelas. Países como Portugal serão os equivalentes europeus à piada do partido do táxi que se aplica no nosso país ao CDS-PP, cujos deputados caberiam num táxi para casa. Em Bruxelas, o poder de Portugal caberá, talvez, numa bicicleta ferrugenta.
Luís Amado, o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE), tem vindo nestes anos a revelar que a sua obstinação nada mais é do que uma arrogância que faltava para compor o ramalhete de José Sócrates. Incapaz de se justificar perante a Assembleia, perante a oposição, perante os portugueses, Luís Amado tem-nos mostrado a imagem que o governo tem de nós: um povo estúpido que deve ser guiado, e nunca consultado. Daí que o nosso MNE tenha, segundo parece, explicado aos jornalistas que este Tratado é demasiado complicado para ser referendado. Ou seja, confirma o que já sabíamos.
Mas a própria Europa tem uma visão dessas do resto do Mundo. A visão de que a Europa anda sempre à frente em matéria de ética. A incapacidade de perceber que os estudantes norte-americanos sabem mais da História não-europeia (sobretudo americana, como é óbvio) do que alguma vez soubemos, de perceber que os EUA têm o dobro dos Estados que a UE tem (cada um com a sua história), ou de perceber que África e Ásia não são Europa, coaduna-se perfeitamente com a maneira como se vê hoje Putin.
O Presidente russo, um frio ditador, mais não é do que um simples burocrata, filho de um sistema político que se perde no passado e nas raízes da sociedade russa. Pede-se a Putin que seja europeu, quando a Rússia nunca foi Europa. Achamos que Putin é um ditador sanguinário quando, no fundo, é um homem amado por muito boa gente naquele país. A mão de ferro é uma prática consensual entre os chefes de Estado russos. São as profissões liberais e o mundo empresarial que sofrem, internamente, com Putin, e não o povo russo.
Daí que o importante não seja a conversa acerca de «direitos humanos», mas sim de liberdades pessoais. De liberdades de intervenção na sociedade russa. Porque isso é o máximo que podemos exigir de um povo e de um país com uma história sui generis, e que nunca compreenderemos tal como não compreendemos em 1938-39, lançando Estaline para o Pacto Germano-Soviético.
Isto porque, em matéria de democracia e de subsidiariedade, não estamos propriamente a ganhar terreno sobre Putin. A perda contínua de capacidade e mobilidade económicas dos pequenos poderes na Europa, e em Portugal isso é visível, corta-nos a palavra quando queremos ensinar Vladimir Putin a governar. Tanto Sócrates como Putin acham que sabem o que é melhor para o seu povo, e nisso, como sabemos, não há voz que lhes chegue aos ouvidos.
Por João Carlos Silva, Fonte: Setúbal na Rede
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