O Fim da Idade do Código dos Cavaleiros

Não dar pontapés ao homem que está no chão, lutar de igual para igual, um contra outro, são regras de comportamento, mesmo quando o ser humano chegou ao ponto de lutar, de utilizar a violência para impor a sua posição; de igual modo o dono de casa que usa um grau de força superior ao que foi demonstrado pelo ladrão enfrenta graves sanções legais na maior parte dos países.

A estas normas de bom comportamento foram traçadas as linhas-guia da lei internacional quando foi estabelecida a Organização das Nações Unidas no dia 24 de Outubro de 1945, quando a Carta foi ratificada pela União Soviética, China, França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América.

A intenção desta Carta é bem patente no seu preâmbulo: “Estabelecer as condições sob as quais a justiça e respeito pelas obrigações que surgem a partir dos tratados e outras fontes da lei internacional possam ser mantidas”.

Durante a guerra fria, os EUA foram forçados a lutar de igual para igual porque tinha uma União Soviética poderosa mas pacífica, ao mesmo tempo preparada a defender-se se a necessidade aparecesse e defender os seus aliados. Mantinha-se a idade do Código dos Cavaleiros, mantinha-se o respeito mútuo e assim sendo, o bem mais venerado era a lei internacional, o santuário mais precioso desta lei era o Conselho de Segurança da ONU.

Porém, com a transformação da URSS na Federação Russa, devido ao facto que os objectivos desta União já tinham sido realizados, nomeadamente o acto de trazer uma nação medieval para a primeira linha de desenvolvimento em todas as áreas, o equilíbrio geo-político se alterou. Enquanto a Federação Russa se estabilizou e encontrou o seu rumo, que é o seguimento da lei internacional, respeito pelas normas democráticas de diálogo, discussão e debate, baseado numa abordagem multilateral à gestão de crises, os Estados Unidos da América agiu como o rapaz de seis anos que se acha sozinho numa loja de rebuçados.

Não contente de encher os bolsos e as meias com a liberdade recentemente achada, toca a engolir todo o que pode e a seguir, parte os frascos para que mais ninguém pode saborear as delícias da loja.

Passado meio século de ouvirmos a cassete de liberdades individuais e políticos (no país que baniu o Partido Comunista e que mantém a pena da morte, no país onde ainda está em prática a censura à imprensa) enquanto, escondidinho, os EUA fizeram tudo menos pactuar com o Diabo, vemos agora a política real que este país sempre seguiu, caracterizada pela Administração Bush, discutivelmente a administração mais à direita que os EUA conhecem há cem anos.

A política real deste país é a dominação do mundo, outrora disfarçado num pacote para fácil consumo, pacote este que a maioria dos países engoliram com uma ingenuidade impressionante. Caíram como patinhos. Agora vem a verdade crua e nua: Washington nunca esteve interessado numa política defensiva, utilizou sempre a retórica e frases-chave como “libertação” e “democracia” enquanto assinava acordos com ditaduras sanguíneas e foi sempre governado não pela classe política aparente mas pelo clique de grupos-pressão que rodeiam a Casa Branca.

Com a administração Bush, temos um grupo de pessoas com fortes ligações ao grupo de energia mas também com grande importância para o grupo de aço e o grupo do armamento. Sobre a energia, nem é preciso dizer mais nada do que o simples facto que o Iraque detém 10.7% das reservas mundiais de petróleo, reservas que Washington há muitos anos cobiça. Eis a razão pela primeira Guerra do Golfo, quando Kuwait foi instigado a praticar perfuração em cruzamento (prospecção de petróleo subterrâneo atravessando a fronteira, roubando o petróleo do Iraque). Iraque advertiu o Kuwait inúmeras vezes, até que tomou a decisão (errada) de o atacar.

Eis a razão pela guerra no Afeganistão, onde o gasoduto que liga os depósitos de gás natural do Turcomenistão com o Paquistão e o Oceano Índico foi a razão e Bin Laden o pretexto: em 1998 Mullah Mohammed Omar, líder dos Taleban, declarou numa entrevista com um jornalista do jornal paquistanês, “Dawn”, que sabia que os EUA iriam atacar o Afeganistão porque ele tinha recusado uma oferta de 5 bilhões de USD para autorizar a construção deste gasoduto, três anos antes do 11 de Setembro.

Ofertas e chantagem são a regra do dia em Nova York, onde os membros do Conselho de Segurança recebem muitos convites para um “pequeno-almoço” com o Secretário de Estado há muito tempo e não só com Colin Powell. Já na altura de Madeleine Albright a pratica foi a mesma. Neste repasto o objectivo não é falar do café mas negociar quanto dinheiro Washington irá colocar nos cofres pessoais do diplomata, ou quanto dinheiro irá ser suspenso ou aumentado nos programas de apoio humanitário para seu país, conforme a situação...uma espécie de violação e estupro quer pessoal, quer internacional.

São estas as regras diplomáticas adoptadas por Washington. É a lei da selva, é a lei do mais forte, é chantagem, demagogia e ditadura, é a lei dum estado pariá. Quando Washington viu que não tinha um fundamento legal para atacar o Iraque e que ou agiria agora ou a administração arriscava não ser re-eleito, começou a mentir, inventando “provas” de ligações entre Bagdade e Niger para o “programa nuclear activa do Iraque” nas palavras de Colin Powell, e depois o absurdo relatório apresentado pelo mesmo, descaradamente, no Conselho de Segurança da ONU, que mais não era do que um dossier copiado pelos serviços secretos britânicos do Internet, os conteúdos sendo nada mais do que uma tese escrito 12 anos antes.

Seguiu-se o total desrespeito pela instituição da ONU, enquanto presidente Bush andava a dizer “ou estão connosco ou contra nós” enquanto falava da “Liga das Nações” e ameaçava que se a ONU não agisse de acordo com os desejos de Washington, não merecia a sua atenção. Não foi esta a lei que os EUA assinou ao ser co-signatário fundador da ONU, não foi este o espírito com que os EUA aceitarem ser o anfitrião desta Organização.

Finalmente, a chacina de civis no Iraque diz tudo. Como os Estados Unidos da América pode falar de violações do Tratado de Genebra pelo exército iraquiano, quando as suas forças armadas consideraram como alvos militares instalações civis, como hotéis, o fornecimento de água, electricidade e telefone e enquanto bombardeavam hospitais e áreas residenciais, enquanto tentavam assassinar Saddam Hussein, contra a lei internacional e contra a lei dos próprios EUA, diz tudo sobre esta administração e este objectivo de ganhar novos terrenos, novo espaço.

Este projecto começou com o extermínio dos Índios americanos, um dos primeiros holocaustos no mundo, um acto de barbaridade, selvajaria, racismo, um acto de genocídio numa das piores escalas jamais vistos no planeta. Onde este projecto irá terminar, só se pode adivinhar. No entanto, o ser humano é um animal com muitos recursos. Se os EUA não quer respeitar as normas de bom comportamento, o Código dos Cavaleiros, este país será posto no seu lugar na altura devida e a história será seu juiz.

Timothy BANCROFT-HINCHEY PRAVDA.Ru

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