Memorial de Álvaro Gardel

Em memória de meu pai por quem não pude chorar

Foi enterrado a 28 de maio com aquele casaco que eu lhe dera em 87, que um dos amantes havia me dado ou roubado ou não sei, era um casaco sal e pimenta vagamente inglês, imagine, ele, logo o velho, logo Álvaro que só se vestia no Minelli desde que eu tinha seis anos e minha irmã quatro, mas de todo modo foi enterrado com um casaco de bom corte, sal e pimenta, meio inglês, que roubei ou ganhei ou não sei que amante remoto eu poderia ter arranjado nos confins do naufrágio de 87 (aqui refiro-me ao meu drama pessoal que agora não vem ao caso) porque o dele (o do velho, o de Álvaro) o arrastou muito antes, vinte anos antes, mais ou menos no início de 70 quando eu o enterrei, nós (eu e minha irmã) o enterramos pela primeira vez, o velho louco, desabiondo y suicida, que aprendera filosofia, dados,  timba e a poesia cruel de não pensar mais em si (como naquele tango de Mariano Mores).

Por isso aceitou e usou o tal casaco dois números maior, dado ou roubado de alguém que já não precisaria de nenhum (um amante talvez morto ou preso ou exilado) sequer de mim que também já começava a naufragar naquele ano de 87 e meu pai - que só se vestia no Minelli desde 1947 - o aceitou com irônica resignação, o velho pilantra antecipadamente morto, como se soubesse ou adivinhasse ou antecipasse que o enterrariam nele pois que doravante repousa precariamente em paz (mas num excelente casaco de tweed inglês sal e pimenta) no columbário número 80 do cemitério de Vila Mariana, ala B.

(Em 26.06)

Há um mês mandei inscrever a lápide com um nome e duas datas, premeditando futuramente o painel de azulejos ou ladrilhos, sem contar a inscrição que desta vez sim, mas não foi assim, posto ter sido informada que em três anos o município recolheria suas cinzas à gaveta de modo que seria bobagem gastar dinheiro por tão pouco, o administrador enxugava a testa coberto de razões e fuligem, os grossos óculos de míope, donde a não menos premeditada quanto tola inscrição In Memorian de Álvaro Gardel, pai eternamente amado, suas filhas Júlia e Amanda - 29.05.24 - 27.05.97  igualmente caput - três nomes e duas datas - sequer esta derradeira vaidade lhe foi concedida, velho (ou  negada à mim?) mas tolamente eu insisto: então não restará nada e terá sido só, terá sido tudo: desejo e pó?

Porque eu não sabia ser tão tarde, tão inútil.

Veja bem, não estou tentando penitenciar-me até porque para mim não há perdão nem castigo nem penitência nem remorso (não há pecado para minha estúpida inocência) apenas a obstinada pergunta sem resposta sobre o desígnio da vida de um homem resumido a duas datas e um nome, enterrado com um casaco de outrem (ele que só...) pai eternamente amado, desejo e pó, e então o silêncio das palavras não ditas, dos gestos desfeitos, enfrentar este vazio sem perguntas nem respostas que é meu pai definitivamente morto na antevéspera de completar 73 anos.

(Em 26.05)

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