Mia Couto: A pobreza sai muito caro


“A pobreza sai muito caro. Ser pobre custa muito dinheiro. Os motins
da semana passada comprovam este parodoxo. Jovens sem presente
agrediram o seu próprio futuro. Os tumultos não tinham uma senha, uma
organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de
poder reverter a decisão de aumento de preços”

Cercado por uma espécie de guerra, refém de um sentimento de
impotência, escuto tiros a uma centena de metros. Fumo escuro reforça
o sentimento de cerco. Esse fumo não escurece apenas o horizonte
imediato da minha janela. Escurece o futuro. Estamo-nos suicidando em
fumo? Ironia triste: o pneu que foi feito para vencer a estrada está,
em chamas, consumindo a estrada. Essa estrada é aquela que nos levaria
a uma condição melhor.


E de novo, uma certa orfandade atinge-me. Eu, como todos os cidadãos
de Maputo, necessitaríamos de uma palavra de orientação, de um
esclarecimento sobre o que se passa e como devo actuar. Não há voz,
não rosto de nenhuma autoridade. Ligo rádio, ligo televisão. Estão
passando novelas, música, de costas voltadas para a realidade. Alguém
virá dizer-nos alguma coisa, diz um dos meus filhos. Ninguém, excepto
uma cadeia de televisão, dá conta do que se está passando.
A pobreza sai muito caro. Ser pobre custa muito dinheiro. Os motins da
semana passada comprovam este parodoxo. Jovens sem presente agrediram
o seu próprio futuro.

Os tumultos não tinham uma senha, uma
organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de
poder reverter a decisão de aumento de preços. Sem enquadramento
organizativo os tumultos, rapidamente, foram apropriados pelo
oportunismo da violência, do saque, do vandalismo.
Esta luta desesperada é o corolário de uma vida de desespero. Sem
sindicatos, sem partidos políticos, a violência usada nos motins
vitimiza sobretudo quem já é pobre.


Grave será contentarmo-nos com condenações moralistas e explicações
redutores e simplificadoras. A intensidade e a extensão dos tumultos
deve obrigar a um repensar de caminhos, sobretudo por parte de quem
assume a direcção política do país. Na verdade, os motins não eram
legais, mas eram legítimos. Para os que não estavam nas ruas, mesmo
para os que condenavam a forma dos protestos, havia razão e fundamento
para esta rebelião. Um grupo de trabalhadores que observava, junto
comigo, os revoltosos, comentava: são os nossos soldados. E o resto,
os excessos, seriam danos colaterais.


Os que não tinham voz diziam agora o que outros pretendiam dizer. Os
que mais estão privados de poder fizeram estremecer a cidade,
experimentaram a vertigem do poder. Eles não estavam sugerindo
alternativas, propostas de solução. Estavam mostrando indignação.
Estavam pedindo essa solução a “quem de direito”. Implícito estava
que, apesar de tudo, os revoltosos olhavam como legítimas as
autoridades de quem esperavam aquilo que chamavam “uma resposta”. Essa
resposta não veio. Ou veio em absoluta negação daquilo que seria a
expectativa.


Poderia ser outra essa ausência de resposta. Ou tudo o que havia para
falar teria que ser dito antes, como sucede com esses casais que
querem, num último diálogo, recuperar tudo o que nunca falaram. Um
modo de ser pobre é não aprender. É não retirar lições dos
acontecimentos.


As presentes manifestações são já um resultado dessa incapacidade.
Para que, mais uma vez, não seja um desacontecimento, um não evento.
Porque são muitos os “não eventos” da nossa história recente. Um deles
é a chamada “guerra civil”. O próprio nome será, talvez, inadequado.


Aceitemos, no entanto, a designação. Pois essa guerra cercou-nos no
horizonte e no tempo. Será que hoje retiramos desse drama que durou 16
anos? Não creio. Entre esquecimentos e distorções, o fenómeno da
violência que nos paralisou durante década e meia não deixará
ensinamentos que produzam outras possibilidades de futuro.


Vvemos de slogans e estereótipos. A figura emblemática dos “bandos
armados” esfumou-se num aperto de mão entre compatriotas. Subsiste a
ideia feita de que somos um povo ordeiro e pacífico. Como se a
violência da chamada guerra civil tivesse sido feita por alienígenas.


Algumas desatenções devem ser questionadas. No momento quente do
esclarecimento, argumentar que os jovens da cidade devem olhar para os
“maravilhosos” avanços nos distritos é deitar gasolina sobre o fogo. O
discurso oficial insiste em adjectivar para apelar à auto-estima.
Insistir que o nosso povo é “maravilhoso”, que o nosso país é “belo”.


Mas todos os povos do mundo são “maravilhosos”, todos os países são
“belos”. A luta contra a pobreza absoluta exige um discurso mais rico.
Mais que discurso exige um pensamento mais próximo da realidade, mais
atento à sensibilidade das pessoas, sobretudo dessas que suportam o
peso real da pobreza.


Mia Couto,O País
< http://www.opais.co.mz/index.php/opiniao/126-mia-couto/9298-a-pobreza-sai-m
uito-caro.html>

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