Iraci del Nero da Costa*
José Flávio Motta**
Para nós, o desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergência da mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passa ele a operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual entra em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista ¾ que a tudo ilumina, como se diria em termos clássicos ¾ tudo subordinando, condicionando e determinando.
De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade natural da humanidade; a partir de então ¾ e na medida em que o capital industrial traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição ¾ apenas um movimento da ação conscientemente dirigida do homem poderá conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente. O primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital industrial e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível à aludida superação.
A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e publicação de O Capital ¾ incluído aqui o estudo que privilegiou a categoria modo de produção e o desenvolvimento histórico observado na Europa Ocidental, que teria ocorrido segundo o encadeamento de modos de produção num continuum lógico-histórico característico dessa área ¾ representaram o primeiro momento do referido movimento do espírito indispensável à criação das condições subjetivas para que a humanidade pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.
Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista. Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e o irrecorrível espraiamento do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação, inda que num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no pensamento e que, portanto, terá de ser por ele sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente do homem, ou de homens livremente associados, ou do "Partido", caso se queira).
No que respeita à referida formulação, dever-se-á ter em mente o seguinte: no capitalismo, a dimensão econômica representada pela produção física e, em larga medida, a própria esfera política assim como a ideológica ¾ todas integrantes da vida social ¾ subordinam-se à dimensão do lucro imediatamente vinculada à produção de valores de troca, dimensão esta a qual, de resto, além de passar a desempenhar papel central na esfera econômica apresenta desdobramentos novos à medida que se dá o amadurecimento pleno das formas mercadoria, dinheiro e capital. Este domínio da dimensão dos ganhos ou do lucro faz com que a ela também se subordinem a alocação dos fatores, a maneira ou modo de produzir, o que e quanto produzir, bem como a distribuição do produto ou dos resultados da produção. Prevalece, pois, no capitalismo, a solidariedade fundada no lucro.
Já as políticas que foram propugnadas pela velha esquerda, sobretudo por socialistas e comunistas, ferem, por via de regra, apenas a tecla concernente à distribuição do produto. Ademais, os teóricos do socialismo preconizaram, principalmente, formas mais equânimes, harmônicas ou igualitárias de se efetuar a distribuição da produção sem se voltarem mais detidamente ao estudo de formas de alocação e de produção alternativas às que são próprias do capitalismo. Tal estreiteza teórica, aliada a outros fatores dos quais alguns colocam-se abertamente no campo da patologia individual e social, também contribuiu para o derruimento do socialismo real colaborando, portanto, para a afirmação e universalização de práticas neoliberais.
Na esteira de tais mudanças situa-se o novo alinhamento de segmentos majoritários da antiga esquerda e da socialdemocracia que, em larga medida, deixaram de lado a perspectiva socialista e passaram a propor soluções meramente redistributivistas ou assistencialistas que não vão além dos limites da sociedade capitalista. Essas propostas recentes configuram, tão somente, o que outro autor denominou capitalismo com desconto; com elas se pretende, de fato, "parasitar" o capitalismo, cobrando da sociedade, com incidência particularmente forte sobre o capital, um "tributo" que clamaríamos de "taxa de garantia do direito de existir", cuja destinação seria atender aos menos privilegiados. Assim, por exemplo, é deste feitio a solução que tentam implementar na Europa alguns partidos de extração socialdemocrata ou comunista, com o que não apenas se desfigura a esquerda mas, sobretudo, obsta-se, de imediato, a própria construção da nova forma de sociabilidade humana na qual se deveria empenhar.
Quanto a esse desfigurar-se da esquerda, escreveu-se já há alguns anos: "Espremida entre uma base social cambiante e um horizonte político em contração, a socialdemocracia parece ter perdido sua bússola. ... Houve época, nos primeiros anos da Segunda Internacional, em que ela orientou sua ação para a superação do capitalismo. Empenhou-se depois por reformas parciais, consideradas passos gradativos rumo ao socialismo. Finalmente, contentou-se com o bem-estar social e o pleno emprego dentro do capitalismo. Se ela admitir agora uma diminuição do bem-estar e desistir do pleno emprego, em que tipo de movimento vai se transformar?" (ANDERSON, Perry & CAMILLER, Patrick. Um mapa da esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 23-24).
De outra parte, se, como apontamos, as propostas que têm surgido no seio das esquerdas são, digamos assim, diversionistas, quais os elementos que deveriam, afinal, estar presentes no esboço de que aqui se trata? Sem pretendermos sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos furtamos a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de encaminhar a discussão.
Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo, tal sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro, para a gestão da vida econômica dessa sociedade "pós-capitalista" precisar-se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.
Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se "naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e articulado do que deverá vir a ser, em ideia, o sistema pelo qual almejam os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe resta por avançar, pois, por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou quase tudo, ainda está por ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato de que não há nenhuma razão de ordem estritamente natural conducente ao estabelecimento e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana.
* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.
** Professor Livre-docente da Universidade de São Paulo.
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