Líbia: a beira do precipício

Há aproximadamente três anos, forças da Otan destruíram o regime liderado por Kadafi; De lá para cá, o país, dividido entre facções rivais, parece cada vez mais distante de alcançar a estabilização política (Bernd.Brincken/CC)

 

Por Sônia Mesquita

Da Retrato do Brasil

A Líbia vive o caos quase três anos após a derrubada e o assassinato de Muamar Kadafi. Combates entre facções rivais antes aliadas tomam conta das principais cidades. O Estado patina amarrado por uma lei que expurgou da administração do país e do Poder Judiciário todos os funcionários que ocupavam os cargos mais altos durante o antigo regime e os proíbe de voltar a ocupar qualquer posto na máquina estatal. O governo ainda não conseguiu reorganizar as Forças Armadas regulares nem constituir uma nova força policial capaz de impor ordem nas ruas. Pior, a força que deveria zelar pela ordem é baseada justamente numa das alianças entre essas milícias, chamada de Escudo da Líbia (EL), uma espécie de guarda nacional que incorporou milhares de milicianos que antes combateram como voluntários o regime de Kadafi.

Não há informação precisa sobre o número de membros do EL: podem ser 10 mil, 100 mil, 140 mil ou 200 mil, conforme a fonte. Igualmente confuso é o seu papel: um novo Exército ou polícia comum? O fato é que seus membros são predominantemente fundamentalistas islâmicos que guardam as relações de lealdade que trouxeram das milícias, só obedecem a seus comandantes e não têm nenhum compromisso com o Estado que lhes paga os soldos por meio do Ministério da Defesa. Seu chefe é Salah Badi, originalmente comandante da milícia mais poderosa de Misrata, cidade costeira cerca de 300 quilômetros a leste de Trípoli, a capital líbia.

A luta entre as facções armadas atingiu o clímax em consequência da polarização desencadeada pela campanha para as eleições parlamentares realizadas em junho. A posse dos eleitos se deu no início do mês passado, mas o Parlamento foi instalado provisoriamente na cidade de Tobruk, no extremo leste do litoral, perto da fronteira com o Egito, para ficar longe da insegurança dos freqüentes combates em Benghazi e Trípoli.

A violência vinha se agravando desde 2012, quando, não por acaso, em 11 de setembro, um ataque ao consulado dos EUA em Benghazi matou quatro pessoas, inclusive o embaixador americano que lá estava para negociar um acordo entre grupos rivais. Dias após, o aeroporto de Benghazi foi fechado quando milicianos atacaram drones de vigilância dos EUA lá estacionados. Em abril do ano passado, um carro-bomba explodiu em frente à Embaixada da França em Trípoli e, uma semana depois, grupos armados ocuparam o Ministério da Justiça exigindo a lei de expurgo dos funcionários públicos da era  Kadafi. A lei foi criada.

Em novembro passado, em Trípoli, manifestantes se reuniram em frente à sede de uma milícia para pedir que seus membros se desarmassem e deixassem a capital. "Em resposta, os milicianos abriram fogo com tudo o que tinham nas mãos, de fuzis AK-47 a metralhadoras antiaéreas", relatou o repórter Patrick Cockburn para a London Review of Books. "Mataram 43 manifestantes e feriram cerca de 400 outros."

Combates eclodiram em 17 de julho deste ano no aeroporto internacional de Trípoli, quando milicianos do EL e outros grupos de Misrata atacaram milícias de Zintan, uma cidade montanhosa a sudoeste da capital, no controle do aeroporto desde quando o capturaram durante as revoltas de 2011. Foram utilizados, inclusive, tanques e metralhadoras pesadas. A torre de controle foi danificada e duas dezenas de aviões foram destruídas. O espaço aéreo foi fechado, companhias aéreas internacionais suspenderam suas atividades no país e os estrangeiros começaram a sair principalmente pela fronteira terrestre com a Tunísia.

Na ocasião, Muhammad Abdul Aziz, ministro de Relações Exteriores da Líbia, pediu ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) o envio de assessores militares para reforçar as forças do governo na vigilância de portos, aeroportos e outros locais estratégicos. Aziz advertiu que a Líbia corria o risco de ficar "fora de controle". Mas ele não obteve apoio da ONU. Diante das inúmeras facções rivais envolvidas no conflito, os diplomatas admitiam estar confusos. "De que lado vamos intervir?", perguntou um diplomata ocidental em Trípoli, ouvido pela revista britânica The Economist.

Em 23 de agosto, uma aliança de milícias islâmicas que inclui o grupo denominado Amanhecer e milicianos de Misrata e de outras cidades do oeste do país anunciou ter tomado o controle do aeroporto internacional de Trípoli das mãos das milícias de Zintan, depois de três anos. Enquanto isso, posições do Amanhecer, também na capital, sofreram ataques aéreos de aviões não identificados.

Segundo informou o diário The New York Times - citando fontes do governo dos EUA -, e de milicianos, haveria envolvimento dos Emirados Árabes Unidos e do Egito, vizinhos preocupados com a situação do país. Ao longo de julho, EUA, França e Reino Unido, as potências estrangeiras que comandaram os ataques contra o governo de Kadafi em nome da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), retiraram ou reduziram ao mínimo seu pessoal diplomático em Trípoli. No mesmo mês, a ONU e a União Europeia fecharam suas missões na Líbia.

A embaixada americana também foi fechada. A evacuação do pessoal não foi feita com helicópteros decolando de cima do telhado, como aconteceu no Vietnã, nos anos 1970, mas teve o mesmo significado, conforme avaliou The Economist. Um comboio de veículos saiu pelo portão da frente na manhã do dia 26 de julho. Era o sinal derradeiro do fracasso dos esforços diplomáticos para deter os combates que se alastravam pelo país.

Por ironia, diz a revista, a evacuação produziu o cessar-fogo que os diplomatas tanto procuravam, mas somente por curto tempo. Tão logo o comboio saiu de Trípoli, rumo à fronteira com a Tunísia, recomeçou a batalha pelo controle do aeroporto. Nos dois dias seguintes, foguetes explodiram dois tanques gigantes de um depósito com milhões de litros de gasolina, agravando a escassez de combustível na capital. As diversas milícias do país se dividiram em dois grandes campos: de um lado, islamitas; de outro, um balaio contendo adversários diversos. Os islamitas são fortes em Trípoli, no leste e no centro do país; seus adversários também são fortes no leste e dominam o oeste, ainda conforme The Economist.

Em Trípoli, cidade litorânea, onde está o quartel-general do EL, também ocorrem suas principais batalhas. O EL luta para expulsar as milícias de Zintan que controlavam o aeroporto da cidade e os bairros ao seu redor. Em Benghazi, também no litoral, cerca de 660 quilômetros a leste de Trípoli, Khalifa Hiftar, ex-general do Exército regular líbio, tenta erradicar as brigadas islâmicas instaladas na cidade. Ele lançou uma ofensiva em maio, apoiado por unidades regulares do Exército e da Força Aérea que lhe são leais, apesar de Hiftar não pertencer mais, oficialmente, aos quadros das Forças Armadas.

Nenhuma dessas forças, no entanto, consegue predominar militarmente. Os dois grandes campos parecem querer fortalecer suas posições diante do novo Parlamento, cuja composição anterior foi dominada pelos islamitas, que usaram sua maioria para aprovar leis controversas, entre as quais a que criou o EL e a do expurgo na administração pública. Os islamitas, porém, não se deram bem nas recentes eleições e ficaram em minoria.

É difícil imaginar um jogo político com partidos na Líbia. O país tem uma história bem diferente do padrão ocidental que estabeleceu a lógica do funcionamento desse tipo de instituição. Nem mesmo o regime de partido único da época de Kadafi se enquadrava no padrão dos países alinhados com a antiga União Soviética.

Em abril de 2012, dois meses antes das eleições para escolher a assembleia que formaria o governo e escreveria uma nova Constituição, o Conselho Nacional de Transição (CNT) da Líbia anunciou a proibição de partidos baseados em religião ou raízes tribais ou étnicas. O primeiro protesto veio do ramo líbio da Irmandade Muçulmana. Pode estar aí uma das primeiras fagulhas que iniciaram os combates pós-Kadafi. Se a política nos moldes das chamadas "democracias ocidentais" não estava em vigor antes, agora suas chances de vigorar na Líbia parecem ter se esvaziado.

Nas eleições para o Parlamento daquele ano, as primeiras após a queda do antigo regime, inscreveram-se 2,8 milhões de eleitores (numa população de cerca de 6,4 milhões de pessoas) para escolher 200 representantes, com pelo menos 32 cadeiras reservadas a mulheres. Contudo, no pleito deste ano, o total de inscritos caiu para 1,5 milhão. Havia 1,6 mil candidatos, a maioria independentes - ou ao menos sem afiliação partidária declarada.

As restrições aos partidos podem ter sido motivadas pela confusão ocorrida em maio, quando, ainda sem uma Constituição e com o Parlamento muito dividido, o país viu-se, de repente, com dois primeiros-ministros. O Supremo Tribunal acabaria por declarar ilegal a escolha de um deles, por falta de quórum na votação.

O Parlamento eleito neste ano deverá, em princípio, substituir o atual, denominado Congresso Geral Nacional, que tinha o compromisso de organizar uma Assembleia Constituinte. Mas o pleito com esse objetivo, realizado no começo deste ano, teve fraca adesão e foi boicotado por minorias étnicas. Vem daí também o acirramento dos combates entre as milícias, inclusive com a iniciativa do ex-general Hiftar, a qual, num primeiro momento, foi interpretada como tentativa de golpe de Estado. A eleição parlamentar foi igualmente boicotada, neste caso pelas minorias amazigh, tobu e tuaregue. É nesse clima que a Líbia deverá procurar um novo ordenamento jurídico e político.

Primavera Árabe e OTAN

Até agora, não há sinais de unificação dos diferentes grupos que disputam o poder. Uma explicação para a mixórdia vivida pelo país está nas particularidades de sua complexa sociedade. A população líbia é constituída por diversos grupos étnicos - por vezes chamados de tribos ou clãs -, formados por árabes ou uma mistura de árabes e berberes (nas regiões costeiras), tuaregues (nômades de pele escura) e tebus (não árabes, também de pele escura, que vivem no sul; ao tempo de Kadafi, eram os mais engajados no Exército regular líbio).

Paul Nitze, professor da Universidade John Hopkins, nos EUA, escreveu no site fragilestates.org que as divisões mais importantes da Líbia são justamente as baseadas em lealdades tribais. Segundo ele, o país tem cerca de 140 tribos e 30 grandes famílias influentes politicamente. A maioria dos líbios depende dos vínculos tribais para quase tudo, da proteção pessoal à busca de empregos. Esses vínculos, que por bem ou por mal se arranjavam de modo relativamente estável durante o regime liderado por Kadafi, agora não mais encontram como referência uma estrutura política sólida.

Por isso, é difícil imaginar que em tal diversidade política tenha sido possível ocorrer um fenômeno de massas nos padrões descritos pela mídia ocidental como Primavera Árabe. "Foram os ataques aéreos da Otan, não os rebeldes, que derrubaram Kadafi", lembra o repórter Cockburn.

De fato, a militarização das revoltas de 2011 foi imediata. Não houve um período com comícios, passeatas e reuniões. "Tuitaços" e outras manifestações virtuais nas redes sociais, se aconteceram, não chegaram perto daquelas descritas pela mídia como catalisadoras das revoltas em outros países do Oriente Médio, especialmente no Egito.

Durante a ocupação da Líbia, a Otan fez mais de 10 mil bombardeios aéreos e lançou cerca de 40 mil bombas sobre o território, numa guerra em que morreram cerca de 80 mil pessoas, entre civis, rebeldes e forças leais a Kadafi, conforme escreveu o repórter Thomas C. Mountain no site Counterpunch. De fato, o que houve na Líbia em 2011 foi uma invasão estrangeira que se aproveitou de certo descontentamento popular nos anos finais do regime de Kadafi. Disso não tem dúvida o antropólogo Maximilian Forte, da Universidade Concordia, em Montréal, Canadá.

Em 2012, em livro ainda sem tradução para o português, Forte publicou um balanço dessa intervenção. "Desconsiderando narrativas de uma 'revolta pacífica' militarizada apenas em resposta à selvageria do Estado, Forte mostra que a revolta foi militarizada praticamente desde o primeiro dia, com um ataque a um quartel militar líbio", afirma resenha publicada na revista Monthly Review em abril do ano passado. "Forte documenta que a ala direita do regime estava claramente preparada para executar um golpe de Estado contra Kadafi, com o apoio aberto da França, dos EUA e, especialmente, do Qatar, que forneceria forças especiais, aviões e helicópteros para garantir sua deposição rápida."

Além disso, o autor mostra evidências de que a Otan cometeu rotineiramente crimes de guerra durante a "libertação" da cidade portuária de Sirte, uma espécie de emblema da era Kadafi. Sua infraestrutura moderna foi construída com a torrente de dólares que fluíram para o país a partir de 1973, na sequência dos aumentos de preço do petróleo, em que o nacionalismo agressivo de Kadafi teve papel importante.

Imperialismo

A Líbia fez parte do Império Otomano até 1911, quando a Itália invadiu a região e a tornou sua colônia, dentro da chamada "partilha da África", uma repartição de territórios africanos entre países europeus, principalmente França e Reino Unido, iniciada na segunda metade do século XIX (ver "Uma história mal contada", Retrato do Brasil edição 45, abril de 2011).

Historicamente, o país tem três regiões: a Tripolitânia, no noroeste, onde está Trípoli, a capital; a Cirenaica, a nordeste, onde está Benghazi, a segunda cidade mais importante (ambas são banhadas pelo mar Mediterrâneo, no norte da África); e, a sudoeste, fica a terceira divisão regional, Fezzan, onde predomina a região desértica do Saara.

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), tribos locais sob o comando de Said Mohammed Idris, um chefe islamita que resistiu à ocupação italiana, recuperaram o território. Em 1939, a Itália retomou o controle da Líbia, novamente enfrentando resistência da população. Em 1942, depois da chegada ao norte da África das tropas de EUA e Reino Unido, os italianos perderam a colônia. Com o fim da Segunda Guerra, a Tripolitânia e a Cirenaica passaram para o domínio britânico, sob mandato da ONU, e Fezzan ficou sob a autoridade da França.

Mas grupos locais lutavam por independência, o que a ONU aprovou em 1949. A Líbia se tornou um reino independente em 1951, e Idris, que liderava o clã sanusi - que até hoje exerce forte influência política na Cirenaica - e ajudou os Aliados na expulsão dos italianos, tornou-se rei. Durante muito tempo, o Reino Unido e, depois, os EUA mantiveram bases militares no país. A descoberta de vastas jazidas de petróleo no final dos anos 1940 e a entrega das concessões de exploração a empresas americanas e britânicas e, depois, à italiana, ENI, trouxeram recursos ao país, mas muito pouco foi revertido em benefícios à população. Em 1959, greves em refinarias eram constantes e, no final dos anos 1960, havia protestos para que o país cortasse relações com os EUA e pela desocupação da base militar americana em Trípoli.

Kadafi, um capitão do Exército líbio, tornou-se o líder do país em 1969, após um golpe militar organizado por jovens oficiais e intelectuais, na esteira do movimento nacionalista pan-árabe, liderado pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser. Kadafi derrubou a monarquia de Idris I, rompendo o atrelamento aos interesses imperialistas de França e Reino Unido, e ao longo do tempo adotou uma política externa voltada a alianças com outras nações da região e com países do bloco socialista, como União Soviética e Cuba, o que causou diversas sanções econômicas e embargo aéreo, aprovados pela ONU.

O país passou a chamar-se República Árabe Popular e Socialista da Líbia. Kadafi expulsou os militares estrangeiros e nacionalizou os recursos do petróleo, além de empresas e bancos estrangeiros. O petróleo passou a ser explorado pelo Estado e tornou-se sua principal fonte de divisas. Internamente, Kadafi criou uma infraestrutura pública de educação, saúde e assistência social.

Em mais de 40 anos, ele baseou seu poder político e a economia do país nos grupos tribais líbios dominantes, com os quais negociou cargos no governo e nas estatais. A partir da segunda metade dos anos 1980, pressionado pelas punições impostas pelas potências ocidentais que causaram o isolamento do país, passou a fazer concessões: abriu a economia para investimentos estrangeiros, inclusive para exploração de petróleo, fez privatizações e se opôs ao fundamentalismo islâmico. Em 2006, retomou relações diplomáticas com os EUA, que em troca retiraram as sanções econômicas.

Porém, a aproximação parcial com Washington não foi suficiente para mudar a face historicamente beligerante com que os governos americanos sempre encararam a Líbia, especialmente durante a presidência do republicano Ronald Reagan, com seguidos bombardeios, com a derrubada de caças líbios que defendiam o espaço aéreo no golfo de Sirte e com a imposição de uma série de sanções contra o governo de Kadafi. Embora muitas das sanções acabassem retiradas, permaneceu de pé a estreita aliança dos EUA com a Arábia Saudita, patrocinadora dos mujahidin que tentaram assassinar Kadafi em 1996, o que certamente contribuiu para o crônico atrito entre o governo da Líbia e o dos EUA.

Brasil de Fato

 

http://www.iranews.com.br/noticia/12685/libia-a-beira-do-precipicio

 

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