Sobre o conceito de "muçulmano" e "islâmico"

As jornadas de um indiano, ou inglês...não, um cidadão de Trinidad e Tobago, pequena ilha no Caribe. Por sinal, o mais ilustre filho dessas terras banhadas pelo Oceano Atlântico. V.S. Naipaul, nestes dois livros, "Entre os Fiéis" e "Além da Fé", faz uma jornada por quatro países muçulmanos considerados "convertidos", no cenário considerado "islâmico internacional".

Malásia, Indonésia, Paquistão e Irã. Seus passos são além do simplesmente físico, de paisagens e pessoas. Naipaul, como em outros escritos seus, talvez em "Os Mímicos", transcende o mero rolar de acontecimentos e, em sua narração, levanta diversas questões de respeito ao ser humano, propriamente dito.

Nestas duas obras, separadas por catorze anos, ele conhece pessoas, mergulha nas culturas, nas lendas e tradições únicas de cada povo, embora exista sempre a pressão indireta pela "arabização" por parte de alguns "teóricos", como disse um jovem paquistanês, citado em seu livro, que "para eles (muçulmanos), a única coisa sagrada são as dunas da Arábia.".

De fato, na crença muçulmana o povo árabe é considerado como o mais próximo do que seria o povo perfeito, afinal "o Alcorão é escrito em árabe, a língua da 'revelação' foi o árabe - assim como o era a língua dos invasores que portavam a bandeira verde do Islã. Mesmo quando essa 'união', a noção de uma cultura árabe 'una' seja fruto mais de uma demagogia política que propriamente uma união cultural, laços conjuntos - Não é necessário citar autores ou teóricos sobre o assunto, basta lembrar de uma reunião da Liga Árabe, ocorrida pouco antes da invasão americana do Iraque, que acabou com o representante iraquiano chamando o kuwaitiano de "cachorro".

Acrescentando, o nacionalismo árabe, como concebido hoje, foi meramente uma invenção de ingleses e americanos no século XIX para salvaguardar seus interesses sobre os povos "conquistados" ou "que necessitavam de educação", como diziam os orientalistas do século XIX, como Disraeli e Sacy.

Estes países chamados de "convertidos" não eram simplesmente países "em branco", com civilizações sem passado ou sem nenhuma base cultural. A Malásia e a Indonésia, por exemplo, possuem raízes culturais que remontam aos séculos III e IV d.C., fortes traços culturais hindus e budistas. Os templos indonésios que sobreviveram às muitas explosões vulcânicas se mantém, alguns, pois outros foram destruídos por alguns radicais, pessoas cujas visões queriam uma "Arábia indonésia", e não apenas ser mais uma religião. O que dizer do Irã? Uma das mais antigas civilizações do planeta, aliás, por muitos séculos uma das grandes potências mundiais (ao lado da Grécia), detentora de uma cultura riquíssima, de especialistas em astronomia, terra de grandes invasões e batalhas.

E o Paquistão? Quiçá seja este o caso mais único, a origem do Paquistão. Naipaul dedica grande parte de suas páginas à tentativa de compreensão deste (sejamos realistas) devaneio poético de sir Muhammad Allama Iqbal, poeta paquistanês que, na década de 1920, durante uma palestra preparatória, em Karachi, para o encontro da Conferência Internacional Islâmica, levantou a idéia da criação de um Estado islâmico, separado da Índia, na época, a jóia da coroa britânica (Iqbal, em um poema datado dos anos 30, viria a sugerir a criação de uma "Liga das Nações do Oriente". Ele diz: "Se Teerã fosse feita Genebra Talvez as questões possuíssem menos dúvidas"

Para se fazer constar, sua solicitação ficou esquecida em papéis e livros antigos de poesia paquistanesa). Em 1947, ano da independência da Índia, o Paquistão, sob a liderança de Muhammad Ali Jinnah (conhecido também como Quaid-é-Azam, ou "Pai da Nação", em Urdu) se tornou um país, acabando com o sonho de uma Índia multicultural, como queria Nehru. Na época, além da parte ocidental do Hindustão, fazia parte do Estado o território de Bangladesh (feito independente em 1970, com auxílio do governo de Nova Délhi). Nessa onda, milhões de muçulmanos acreditaram na criação de um Estado islâmico. Ou como acreditava o sr. Jaffrey, um dos entrevistados por Naipaul em Teerã, na "Jomé Towhidi", ou "Nação dos Crentes". O que se criou foi um país instável politicamente, sem uma identidade própria. Aliás, uma identidade dúbia: o passado indiano, das tradições e crenças, dos mitos e lendas. A identidade islâmica se sobrepôs, o passado indiano, ao menos aparentemente, foi colocado de lado.

A primeira capital, Karachi, um caldeirão de culturas, arquitetura indiana ao lado dos traços islâmicos e ingleses, cidade antiga, portuária. A busca pelo progresso e desenvolvimento gerou uma capital construída no norte do país, na área do Rawalpindi. O nome? Não poderia ser diferente: Islamabad. O Paquistão, hoje em dia, é um país pobre, como assim o é o Irã. Já Indonésia e Malásia vivem surtos de crescimento e riqueza, embora preservem seus passados e sua tradição rural.

Esta dualidade de situações entre países que, em tese, deveriam ser parte das "dunas da Arábia" é a primeira grande questão de Naipaul: a diferença entre uma república islâmica e uma república muçulmana. Comecemos esta discussão pela análise da Revolução Iraniana de 1979 e a subseqüente guerra contra o Iraque. Naipaul esteve na capital iraniana seis meses depois do grande ocorrido, da fuga de Pahlevi para o Egito. Naipaul chega na empoeirada capital iraniana em uma sexta-feira do Ramadã. Ruas vazias, cartazes conclamando a revolução. Os restos de uma civilização anterior ainda olhavam por cima do muro, vendo o furacão "Khomeini", ou, como Naipaul gosta de enfatizar, o estrago feito também pelo Aiatolá Khalkhalli. Ele era o chefe das Cortes Revolucionárias, um órgão considerado temporário, apenas para os primeiros dias da revolução, que matava aos montes. Os caminhões saíam da sombria prisão de Evin - por acaso perto do hotel de Naipaul, em sua segunda jornada - cheios de cadáveres. Ex-oficiais da SAVAK, partidários de Pahlavi, adversparios da revolução. Mortos ou encarcerados, como ficou se sabendo depois, tinha estado o primeiro presidente da República Islâmica, sr. Bani-Sadr.

Os jornais retratavam os números da matança, mas aos poucos foram se livrando deste tipo de notícia no mínimo mórbida. Sem dúvida, a religião havia tomado o lugar da autocracia dos Pahlevi. Isso se percebeu no segundo plebiscito feito após a revolução. Quem deveria fazer a Constituição? E como fazer uma Constituição Islâmica?

Khomeini sugeriu aos eleitores que votassem nos clérigos. Dito e feito. Uma Constituição foi feita, colocando como o caráter máximo não o Estado, mas sim a religião. Isso se mostra ainda mais presente na Lei de Imprensa, de 1986. Os piores crimes são contra a religião, e não contra o Estado. Aliás, assim como no Paquistão, onde se chicoteava as pessoas que não se prostrassem nas cinco rezas diárias, o Estado havia ficado subjugado, era uma instituição menor, se comparada com a religião.

Seja no caso do Irã, onde os clérigos, com o poder supremo da palavra e converter uma mensagem indireta e sujeita à milhares de interpretações em uma bomba que incitaria os habitantes a tomá-lo como o topos de suas existências.

Naipaul vira o cemitério dos mártires, nos arredores de Teerã, bem de perto, durante o início das tensões com o vizinho Iraque. O chafariz jorrava água com tinta vermelha, imitando o "sangue que jorrava dos mártires". Jovens, para Khomeini, eram o cerne vivo da revolução. Para ele, os mais velhos eram "peso morto". A contradição ad extremis, já que os clérigos não eram tão jovens assim.

Khomeini morreria em 1989 com quase noventa anos. Seja no caso do Paquistão, que sofreu com a "ira" religiosa do general Zia ul-Haq e do desprezo com os outros povos que ali viviam. Os Baluches, predominantemente nômades, tentaram uma revolta comunista nos idos dos anos 70.

Mas o principal caso é o dos Mohajires. Quando o Paquistão foi formado, haviam mais muçulmanos na Índia que no próprio Paquistão. Aos poucos, muçulmanos que acreditavam em sua "terra prometida" iam ao Paquistão. Para o único lugar do país onde eles eram aceitos, a província do Sind. Assim como patanes, vindos do Afeganistão. A tensão entre os habitantes do Sind e os emigrados da Índia e Afeganistão era como uma panela prestes a explodir. Não demorou muito para a explosão. A violência surgiu, e aqueles que deveriam ser todos "muçulmanos em um país de muçulmanos" estavam frente à um sério conflito étnico. Étnico e governamental. O sonho de Iqbal se fragmentava como um kebab velho.

Indonésia e Malásia são extremamente parecidos. Possuem um idioma praticamente idêntico (o Bahasa Indonesia e o Bahasa Maluy), as tradições passadas parecidas, ligadas ao hinduísmo e ao budismo. Ambos foram colonizados por países europeus (Holanda e Inglaterra), e ambos receberam o Islã por meio de mercadores indianos. O passado é vivo, embora alguns tentem esquecê-lo. Poetas e tradições sobrevivem, assim como as tradições rurais. Mesmo o islã acabou se adaptando, sobrevivendo através dos "pesantren", escolas islâmicas rurais, para jovens, não no mesmo molde das madrassas paquistanesas e afegãs, mas sim uma comunidade rural, onde os jovens liam o Corão e exerciam alguns ofícios. Já os "kampung" eram pequenas comunidades, islâmicas, no campo. Viviam do arroz, tipicamente asiático. O islã, embora seja uma religião dominante nos dois países, não atingiu um nível, um grau, tal qual nos outros países, a ponto de ameaçar o estabilishment do país. Os países nunca foram conquistados por exércitos islâmicos, nunca fizeram parte do Império Islâmico, receberam o islã como uma religião, cujo primeiro califado foi fundado no século IX, na ilha indonésia de Banda Aceh.

Essa dualidade de recepção do islã modificou a percepção do próprio papel da religião, a questão levantada por Naipaul, da noção de "país islâmico" e "país muçulmano". Paquistão, Irã, são países islâmicos, são países onde o Islã não é uma parte da sociedade, mas sim "A" sociedade, as leis, os parâmetros do certo e errado. Já o país muçulmano é o país, bem, chamá-lo de laico seria um tanto de exagero, mas o islã não domina todos os aspectos da sociedade. O Islã é uma religião, não ligada ao Estado, pelo menos diretamente, como ocorre nos países islâmicos. O país cresce normalmente e, no caso dos dois países citados por Naipaul, cresce e muito. Eles são mais livres, mesmo ideologicamente, para manterem suas tradições pré-islâmicas, suas identidades originais. Não que não haja a pressão, mas, colocando em termos gerais, os países islâmicos pressionam a sociedade rumo a uma "arabização" de seus costumes, de desapego às tradições e história passada, o islã passa a ser o marco zero da história. No caso destes dois países, Paquistão e Irã, mesmo seus idiomas foram modificados, o alfabeto árabe foi adotado, e mesmo palavras árabes importadas aos vocabulários. Nos países muçulmanos, há a pressão para a "arabização", porém esta passa por setores não diretamente ligados ao governo, a arabização não é uma política do povo, de Estado. A dualidade dos aspectos culturais em choque gera formas próprias de religião, interpretações diferentes, sensações diferentes.

Aliás, diferenças, isso que Naipaul tenta mostrar em suas obras. Como uma religião cujos líderes dizem ser uníssona pode ser tão diferente em países que seguem.

Esta divisão entre "islâmico" e "muçulmano" marca a tese de que a identidade de um povo, mesmo que invadido, se mantém, brigada, inflitrada, por vezes imperceptível a olhos estrangeiros. Porém, se observada de perto, veremos que o verde da bandeira dos exércitos islâmicos não são do mesmo tom, que as cordas não soam da mesma maneira, os muftis, mulás e ulemás não recitam as palavras do mesmo jeito. Naipaul mostra que não existe um "mesmo" islã, mas sim milhares de islãs, cada qual com suas raízes. A pureza cultural não é mais que um conceito perdido entre teorias infundadas.

Filipe BARINI PRAVDA.Ru RIO DE JANEIRO BRASIL

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