Mais que um mecanismo de referenda dos acordos de paz, se requer um novo sujeito capaz de mudar o poder em Colômbia
Por Oto Higuita
Querem os empoleirados no poder que seja um plebiscito o mecanismo de referenda dos acordos que surjam da mesa de diálogos de Havana, cientes de que não se acordou entre as duas partes e que é um requisito para a firma do Acordo geral do fim do conflito.
Pretendem que um povo alheio aos diálogos de paz ou, no pior dos casos, oposto ao mesmo com os argumentos daqueles que manipulam sua consciência e alienam seu próprio interesse passe por alto não só esse compromisso, senão que transbordados com o poder que assaltaram como feras famintas deixando milhões de vítimas ao longo de anos de confrontação; aspiram a que esses milhões de vítimas de sua estratégia de morte os exaltem como os heróis de uma guerra sem vencedores nem vencidos, salvo a montanha de mortos que jazem insepultos nos campos.
É tal o grau de poder que os incrustrados no poder do Estado concentram, que se dão ao luxo de dividir-se em dois bandos, os quais, arrogantes e com suas mãos ainda sangrentas, querem continuar com o baile da morte, e os que, saciados de acumulação e mando, apostam por deter a orgia macabra. Só disputam o modo como querem continuar a condução de um Estado que assumem como próprio.
O plebiscito é um mecanismo que tem sérios inconvenientes que têm sido explicados por diferentes expertos em assuntos constitucionais e legais. O primeiro, não pode ser uma decisão unilateral que uma das partes imponha à outra. Neste caso, o governo insiste e se mostra agressivo e desafiador ao insistir no plebiscito, tal e como expressou recentemente Santos ante o país pelos meios de comunicação, quando disse que "O que se firme em Havana submeterei a plebiscito, agrade ou não às FARC".
Ademais desta arrogante atitude, o plebiscito seria inapropriado para referendar os acordos porque, ainda que é um mecanismo de consulta popular consagrado na Constituição, a Lei 134/94 o regula da seguinte maneira: "O plebiscito é o pronunciamento do povo convocado pelo Presidente da República, mediante o qual apoia ou rechaça uma determinada decisão do Executivo". Quer dizer, só pode ser convocado pelo presidente.
Há dúvidas sérias sobre o caráter vinculante do plebiscito. Quer dizer, o acordado na mesa de diálogos de Havana passaria a ser norma, o qual gera dúvidas, já que a Corte Constitucional em Sentença C-150 de 8 de abril de 2015 concluía: "Em síntese, o plebiscito tem como finalidade avalizar ou rechaçar uma decisão do executivo com propósitos fundamentalmente políticos e não normativos [...]".
Nesta mesma linha, o Congresso aprovou recentemente a Lei estatutária que convoca o plebiscito para a paz, onde se afirma que "A decisão aprovada através do Plebiscito para a Referenda do Acordo Final [...], terá um caráter vinculante para efeitos do desenvolvimento constitucional e legal do Acordo. Consequentemente, o Congresso, o Presidente da República e os demais órgãos, instituições e funcionários de Estado, dentro da órbita de suas respectivas competências, ditarão as disposições que lhes correspondam para acatar o mandato proveniente do veredito do povo expressado nas urnas".
Esta Lei estatutária diminui, ademais, o limite aos 13% do censo eleitoral que está em 33'820.199, o que quer dizer que com apenas 4'396.625 votos seria aprovado, quando o que haveria que buscar é que uma imensa maioria votasse para que o acordo obtenha uma sólida base de legitimidade e uma esmagadora vitória. De acordo com a norma que estabelece o plebiscito, para que este ultrapasse o limite se necessitariam 16'910,099 votos, isto é, 50% do censo eleitoral, o qual seria difícil de alcançar se temos em conta o abstencionismo que caracteriza as eleições em Colômbia. No entanto, o desafio da paz nos obriga a derrotar até o abstencionismo.
E se ademais se diz que o que se acorde em Havana haveria que submetê-lo a uma comissão legislativa, em quem se delegaria a tarefa de criar a normatividade que dará vida ao acordado, quando a magnitude das reformas constitucionais que apresentam os acordos ultrapassam as funções de uma comissão legislativa, então o plebiscito definitivamente não deveria ser o mecanismo de referenda que se acolha.
Construir um processo que desemboque numa Assembleia Nacional Constituinte como ponto de chegada pode ser o cenário democrático mais idôneo para fazer as reformas de fundo e estruturais que uma sociedade que busca sair de mais de 50 anos de confrontação armada requer, e abrir completamente as portas a um processo de abertura democrática que inclua àqueles que historicamente foram excluídos da participação política por vias legais.
Transitar para um novo momento requer convocar o constituinte primário e suas demandas de justiça, democracia, participação e vida digna para todos. Com base em mandatos populares e legítimos que recolham a voz e as demandas das maiorias silenciadas.
A Constituição de 91 não cumpriu com o mandato que a Assembleia Constituinte lhe outorgou quando afirma no preâmbulo "...assegurar a seus integrantes [o povo colombiano], a vida, a convivência, o trabalho, a justiça, a igualdade, o conhecimento, a liberdade e a paz...". Nem tampouco tornou realidade o cumprimento da paz como um Direito Fundamental, como ordena o Art. 22: "A paz é um direito e um dever de obrigatório cumprimento".
Se lhe fizeram tantas emendas e mudanças que hoje não interpreta o interesse geral das maiorias e sim o particular de uma minoria que ficou com as riquezas do país; entregou a soberania nacional a uma potência estrangeira; e o modelo econômico que rege nossa política econômica, o neoliberalismo, tem suporte legal nela, a Constituição de 91, dando passagem livre às privatizações e aos TLCs que empobreceram o campo e suas gentes com as importações que hoje têm em xeque a soberania alimentar. Tudo isto tem suporte legal numa Constituição que foi pensada para tirar o país da crise social e da guerra que ontem como hoje é o desafio maior a superar.
Hoje, do que se trata é de continuar avançando no processo de formação que devolva ao constituinte primário sua condição de sujeito de mudança, sua virtude cidadã superior: para que seja o único fator real de poder que modifique as profundas estruturas de injustiça que subjazem a este Estado e regime político, modificando a balança de forças a seu favor, e não como até agora se manteve, do lado dos poderosos daqui e de lá.
Tradução de Joaquim Lisboa Neto
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