Santiago, Chile
Com os anos que pensamos que nos restam, vamos pensando nas árvores que vimos, em aromas passados, imagens de amor que nos ofereceram. A vida é muito curta, o passado não importa, temos ainda oportunidades?
Os sofrimentos que tivemos, quem nos fez sofrer também sofreu.
O requinte do suicida é não matar ninguém com ele; deixar ficar aqui os outros, presos aos seus labirintos e angústias. Entre um cinismo-defesa num jogo de poder, existimos dançando ao sabor do vento e dos seus vários sopros (que mudam de direção); as canções que ouvimos entoar empurram-nos como feras; mas ainda encontramos flores no caminho que nos deram; cartas que escrevemos, fotografias antigas de gente amiga; alguns já cá não estão; outros nem sabemos, porque fotografámos pelas acrópoles de todo o mundo, cheias de gente anónima para nós. Tudo são esforços tão bizarros que o que fazemos não se explica. O esforço só é útil se tem sentido e o sentido escapa-se como água entre os dedos. Os montes verdes, castanhos, claros, são infinitos; são a liberdade minúscula a que temos acesso. Os mares dão força e alívio com o seu imenso azul, o cheiro de sal, a espuma que nos afaga. As praias são a fusão deles com a terra, por isso atraem. O vento pode ser harpa ou violoncelo, flauta, ou violino desafinado como carrilhão rouco, bêbedo, sarcástico.
Sim senhor, repetimos. Uma inspiração que vem dos luares, das cordilheiras, da bandeira do Chile: um traço branco pelos Andes; outro de vermelho - o sangue índio; o azul que representa o oceano Pacífico; uma estrela a significar independência.
Um palácio chamado La Moneda, um imenso bairro de lata, ou favela, ou chavola, chamado Valparaíso, onde Neruda teve casa; é perto de Viña del Mar.
Repentinamente regressamos; o avião, teimosamente, devolve-nos. Não chegamos a conhecer pessoas na maior parte dos casos; noutros encontramos gente que fica em nós, em si mesma, em fotos, em cartas, em e-mails, em desejos de sorte, de bom aniversário, de boas festas.
É essa gente que connosco vai estando, quantas vezes mais perto do que os que habitam ao lado, e nos vai acompanhando num caminho essencialmente solitário.
Não temos fronteiras, as bandeiras são como bolos de noiva - o seu significado aproxima-se. Entre o calor e o sabor da terra está o torrão de açúcar branco, as natas também comidas em Sydney.
Os casinos estão por aí, cheios de pobres que adormecem um pouco mais.
Há tantos caminhos que ficarão por caminhar.
Há tanto sol que não poderemos ver.
Há tanto arco-íris que não chega a locais felizes.
Há tanto vento que não nos baterá na face.
Há tanto tudo que tudo é pouco para dizer.
Só falam de nós porque seguem a tradição.
Com que vontade falamos dos que não sabem ler, dos que não sabem escrever nem contar ou não podem comer? Não há vontade que reste para sustentar otimismo ou realismo. O surrealismo é a única forma de encarar o destino do piano encravado numa nota só. Há Santiagos vários, Santiago de Compostela, Santiago do Chile, esse, imenso nos seus seis milhões de habitantes, no seu vento gelado, nas pessoas que remexem lixo em busca de alimentos... nem vento nem chuva apagam as lembranças do Chile, de Gabriela Mistral, a poetisa das crianças, de Salvador e Isabel, de Sepulveda, dos dois mil vulcões, dos terramotos, da tirania, do Pinochet de serviço em qualquer tempo e lugar, pluricontinental, multilatitudinário e longitudinal.
Carlos Mota,
UTAD, Vila Real, para a minha filha Maria Clara (1987-2011).
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